domingo, 2 de novembro de 2014

Epifânio Augusto em: O Cãopirôto


Capítulo 2

O Cãopirôto

 Era manhã de sábado, o sol ardia, pouco antes das oito, estávamos todos muito bem vestidos, Carlos Magno, Paolo, Rubinho, Manel Hilário, e Mário Alberto, e eu, mas ele...ele não estava lá. Ela aparecera na escola durante a semana, mais precisamente na quinta feira e estes dois dias foram suficientes para mudar nossa visão da vida, da lua, do vento, do sol, dos pássaros, até dos cães que chutávamos na rua...passamos, como num passe de mágica, a amar todos os animais do planeta, o javali (ai que lindinho), a onça, o texugo, o orangotango (parece um principezinho), o poraquê (eletrizante), apesar de duvidar que qualquer um de nós já tivesse visto um javali, ou onça, ou esses outros aí de pertinho, mas...os amávamos...amor de Deus pelos animais... olha que coisa!!! kkk, ficamos todos muito românticos, muito humanos,  digo, nada humanos....o sentimento que nutríamos nada tinha de humano...humanos são maus, em sua grande maioria, e a minora?....são péssimos...mas o sentimento era algo assim...tipo..celestial. Viera de outro estado e se chamava Valentina Gurgel, Maria Valentina Amâncio de Freitas Gurgel pra ser mais preciso...era a própria visão do divino, olhos esticadinhos, quase nipônicos, uma pele marrom queimada, mas não era queimada de sol, era queimada de fábrica, tipo, produzida na fornalha vulcânica do amor de seus pais...cabelos cacheados, presos na lateral por uma dessas fivelinhas de apertar que faz plec, sobrancelhas grossas, quase unidas, de uma textura de veludo negro azulado que bem lembrava as saias da boneca Barbie...hum...e a  boneca Barbie usava saia de veludo? Alguém sabe dizer? Nem vou falar nos lábios...er...err...como não falar? Aqueles lábios...hummm que lábios...lábios reticentes, omissivos que guardavam segredos ocultos, segredos já são ocultos ora, mas os que aqueles lábios guardavam não eram nem para se pensar em desvendar, houve quem morresse tentando desvendar mistérios de lábios como aqueles...ahhh...seus lábios...eram carnudos sem exageros, quando sorria tomava de assalto nossas mentes e vistas e ficávamos como quem sonha um lindo sonho...aqueles lábios de morder guardavam dentes tão branquinhos que a brancura polar não lhe era suficientemente comparável.  Adventista do sétimo dia, vestia-se de maneira sóbria e quando falava...sua voz...que voz...suave sem ser frágil, doce e firme feito rapadura...foram duas noites em que cada um de nós dormiu pensando nela, ouvindo sua voz, imaginando como seria o primeiro beijo naquela boquinha linda que faria Joli invejar...esperávamos ansiosos por sua chegada à igreja...quem passava na frente da igreja e nos via ali, não só se admirava como se benzia, rezava o credo, invocava os orixás e dava três pulinhos, (égua que porra é essa?!!!), que gente preconceituosa, como se aqueles jovens fossem endemoniados e irrecuperáveis...confesso que eu também acreditava nisso àquela época, éramos danados demais...mas...lembrei que...ele não estava lá...a vontade de ver Valentina era tamanha que nem pensávamos ou lembrávamos dele, que fazia parte da turma também, mas naquele momento, já éramos seis guris com os hormônios à flor da pele numa silenciosa disputa para saber quem receberia o primeiro olhar dela...da diva.

Dois dias...apenas dois dias e já éramos os primeiros à porta do céu caso Jesus voltasse naquele momento, de tanta que era a nossa santidade, ou pelo menos a que queríamos que ela pensasse que tínhamos, mas...ele...ele não estava lá.

Eis que chega o carro do pai dela...não lembro bem que carro era, mas sei que era verde, um verde que contrastava com qualquer uma de nossas roupas, Mário Alberto usava uma blusa cáqui e uma calça de brim tingida de preto para parecer nova, lembro bem que ele a usara na festa de ano novo dois anos antes, eu de listras em vermelho e amarelo, Manel Hilário de camisa branca de uma marca conhecida...Hering...Carlos Magno de roupa social que findava num colete igual esses que os escritores usam...almofadinha!! Paolo era o mais novo de nós e estava de conjuntinho infanto juvenil e Rubinho de calça USTOP e camisa xadrez...e o carro? ...verde ora...tão somente verde...mas ele...bom...ele não estava lá...

Ela desceu do carro e o sol pareceu diminuir seu brilho...há bem poucos minutos atrás teimava em nos derreter com seus raios ardentes e ...acho que ficou tímido diante daquela formosura de menina...ainda não chegara ao Debut, mas nem o imponente astro rei encorajou-se a encarar-lhe o brilho...que divina...vestido longo, sereno, de cores tradicionais, um sapato de salto alto baixinho, desta feita usava no cabelo uma travessa de florzinhas...se dirigia a nós em passos suaves...sorriso nos lábios...duvido que algum de nós não tenha pensado em casamento naquele momento apesar das poucas idades, entre 13 e 14 anos...mas agindo como homens...mas ele não estava lá...não, não estava lá...   ...   ...não o quê?????

De repente ouvimos um “-CÓÓÓÓÓRRRRREEEEE!!!!”

PUTAQUIUPARIU era ele...Epifânio Augusto descia a ladeira ao lado da igreja desembestado, vindo lá de cima, dum quintal onde havia uma mangueira frondosa, com um enooorme vespeiro no tronco, bem lá no alto...tinha derrubado a casa das vespas...o preto safado descia numa velocidade supersônica, aos berros e se batendo...passou por nós como uma bala preta...não...branca...não......preta albina...kkkkk...não tivemos nem ação de correr...o enxame chegou...não, enxame não...aquilo não era um enxame era um tsuxame.....a paquera acabou, o brilho acabou, o vestido acabou, o verde do carro acabou...só restaram os gritos de ai, ai, ai, ...olhei pra trás no momento da fuga e deu tempo de ver a menina gritando pelo pai e tentando se livrar daquela nuvem de marimbondos...tadinha...soube mais tarde que os lábios outrora carnudos sem exageros, ficaram exageradamente inchados...hihihihi!!

Dias depois nos contou Epifânio, derrubara o ninho para pegar mel...caralho Epifânio essas aí são as abelhas burraldo!!!!...são as abelhas que fabricam o mel...as vespas são como mulher casada enxerida...só fabricam dor e sofrimento, seu mentecapto...

Ele era assim...endiabrado...não passava um dia inteiro sem aprontar alguma traquinagem...sem fazer uma pretice...

Soube há um tempo atrás que Valentina casou com um irmão da igreja...que bom...melhor assim...acho esse povo de igreja meio paradão, sabe? Sem muita diversão...se qualquer um de nós tivesse ficado com ela, esse perderia a amizade do lôro Epifânio porque ele não iria à igreja...com ele nem Deus quis se meter...imagino Deus olhando pra ele e pensando...“Como pode alguém ter nascido pior que Lúcifer?”

E a igreja? Bom... a igreja...passou a vontade de sermos salvos...na verdade a salvação para nós naquele momento estava na figura de Valentina...ela iria nos redimir dos nossos muitos pecados e iria nos levar pessoalmente até as portas do paraíso...a beiçuda, agora era assim que a chamávamos hahaha...deixou de ser o alvo de nossas “imaginações”...o lôro conseguiu essa proeza...naquele dia ele foi mais importante do que ela nas nossas vidas...ele nos livrou da tentação da mulher bonita na vida de um garoto...garotos são como brinquedos nas mãos delas...as...mulheres...

De certa forma o cãopirôto fez mais uma coisa boa por nós...pelo menos comigo se deu assim...sempre que me trancava no banheiro para aquelas horas de meditação, reflexão e muita oração, cê entende, né? Quando Valentina começava a rondar meus pensamentos, me vinha à mente a tragicômica cena do neguinho de cabelo pintado de lôro descendo a ladeira, correndo, se batendo, com um exército alado em seu encalço...HAHAHA não tem pintinho duro que resista...e me espoco de tanto rir e saio logo do banheiro...

Epifânio não tirou água da rocha, não abriu o mar vermelho, não andou por sobre o mar, mas... tentou...ah sim...tentou beber do mel das vespas...

O que eu sei é...se Jesus voltasse agora para pegar os seus...nós sete estaríamos novamente no fim da fila...se é que estaríamos na fila.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deusa Arte.

MÚSICA Já escrevi sobre a presença da arte nas nossas vidas. “A arte é assim, alguns gostam, outros nem tanto, outros são distantes, mas tod...