sábado, 15 de novembro de 2014

Epifânio Augusto em: Origens

Capítulo IX

Origens

A galera ia apanhar maracujá do mato na estrada perto da pedreira, já éramos seis, faltava Manelzinho. Chegamos frente ao portão da casa dele, e chamamos. O menino olhou pela janela, abriu o sorrisão, foi até a porta já com a camisa no ombro e se preparando pra pular sem descer pela escada quando ouvimos Dona Darcy, mãe de Manelzinho, inclinando o dedo em riste de um lado pro outro negativamente, berrar da janela lateral, lá do fundão da casa de madeira:
-Manel num vai sair hoje pra canto nenhum, tem muita coisa pra fazer, vai ajudar o pai a consertar a cerca, vai plantar maniva, arrumar a porta do galinheiro que a mucura quebrou noite passada, vai dar de comer aos bichos, tem muita louça pra lavar do batizado de ontem à noite aqui em casa, a roupa tá toda na bacia pra ele enxaguar e estender no varal, deu bicheira no ovo do maciste (o cachorro deles), vai ter que ir na venda do Totonho comprar creolina pra passar, e vai na casa da avó pegar  mangará de cacho de banana prata, pra fazer lambedor pra irmã dele tomar, que tá com uma tosse daquelas de enrolar rabo de macaco guariba!!! Parecia uma metralhadora a mulher.
-Epifânio, com a seriedade de um Imortal da Academia Brasileira de Letras, analisou a situação com sabedoria:
“- Se fosse preto tava no tronco da senzala acorrentado esse escravo...é o multi-homem!”.
Estávamos os seis na estrada, Paolo, Rubinho, Mário Alberto, Carlos Magno, o loro e eu, já tínhamos pego três camisas da fruta, amarrávamos os buracos das mangas e do pescoço das blusas e fazíamos de sacola, as árvores eram baixinhas e não precisávamos subir pra pegar os melhores frutos. Quando ouvíamos barulho de carro sentávamos na estrada como se estivéssemos apenas conversando, claro que, muito provavelmente, ninguém acreditava que estávamos apenas conversando, o histórico de travessuras nos acompanhava.
O Ford Galaxie/1970 de seu Ardjan apontou na curva da estrada...sentamos...pareceu diminuir a marcha ao nos avistar...passou por nós bem devagarzinho...nos olhando com uma expressão de ...sei lá....de frieza...angústia...talvez pela vergonha que passara ao revelar da pior maneira que não sabia nadar e teve que ser salvo por um bando de moleques...   ...   ...quando cruzou o olhar com Epifânio a testa franzida se desfez...a feição aliviou a tensão e ...pude ver um leve retesar do canto da bochecha esquerda...um quase imperceptível sorriso...que não foi correspondido pelo amigo ao lado.
A estrada era em aclive e o carro continuou a subida vagarosamente quando chegou correndo Manelzinho, sabia onde nos encontrar, com uma notícia nada agradável pra Epifânio:
-Loro, teu pai tava bebendo no bar da Nilda e chegaram uns garimpeiros de fora...teu pai falou besteira e quebraram ele todinho...levaram ele pra casa muito machucado...se tinha alguém nessa vida que Epifânio amava além da conta era aquele pai...seu Otacílio era um neguinho franzino, que gostava de tomar uma tatuzinho(cachaça) de vez em quando e quando ficava de porre falava alto e revelava os segredos que sabia de todo mundo...ah bocudo!!!
Na hora que Manel nos deu a notícia, nos preparamos rapidamente pra ir. O carro de seu Ardjan parou no alto da ladeira, ele já sabia o que tinha acontecido com seu Otacílio, e também, de alguma maneira, já sabia onde nos encontrar, só não quis dar a notícia pra Epifânio, pois viu multi-homem correndo na estrada. Vimos quando ele fez a volta pra descer e veio rápido em nossa direção...Epifânio parou no meio da estrada, agora com cara de raiva, de frente pro carro, ficamos na beira vendo a cena, o Holandês parou perto do neguinho com o motor ligado, olhando fixamente pra ele, loro gritou com ira:
”- O QUE TU QUER??? VAI EMBORA...NÃO TEM NADA A VER CONTIGO”.
Olhamos aquele cara, se Epifânio estava com raiva dele, também estávamos, fomos pra estrada...pra frente do carro...
O Holandês saiu do carro e disse:
-Entrem no carro, levo vocês mais rápido até a cidade.
Epifânio baixou a guarda, olhou pra nós e assentiu com a cabeça para que entrássemos no carro, mas antes falou para o homenzarrão:
-Isso não muda nada, entendeu? não muda nada!
Pensei comigo: Esse guri ainda guarda muita mágoa daquele soco no estômago, daquelas palavras racistas e preconceituosas!
Quando chegamos na casa dele, Dona Cristina, sua mãe, já recebeu Epifânio aos prantos dizendo: “- Meu filho, pelo amor de Deus seu pai vai ficar bom, vai ficar bom, por favor não vá atrás de mais confusão!
Loro correu pro quarto onde encontrou o pai todo arrebentado na rede, a cabeça aberta, certamente iria pegar muitos pontos se fosse no posto, o braço na tipoia, parecia quebrado, os olhos fechados de muita porrada e a boca cortada dos murros que levou.
O menino nada falou, apenas chorou com a mãe abraçando-o por trás aos prantos de dor e medo que o pretinho quisesse briga...   ...   ...   ....   ....e ele queria!
Foi na cozinha e se armou com uma peixeira...a mãe gritava  “-NÃO MEU FILHO, NÃO VÁ ATRÁS DE NINGUÉM”. Não adiantou, o menino correu no fundo do quintal e veio com um porrete que tinha preparado para quando precisasse, parecia um taco de beisebol, só que de uma espessura só...grosso.
Quando correu pra fora estávamos lá...esperando...ele berrou com a gente:
-NÃO VAI NINGUÉM COMIGO...NINGUÉM, ENTENDERAM?...NÃO PRECISO QUE NINGUÉM ME PROTEJA HOJE!
Toda a cidade já sabia do ocorrido, tinha muita gente na casa de seu Otacílio, todos sabiam que os garimpeiros eram perigosos e matavam por besteira, Dona Betsie e Ankie também estavam lá. Tentaram fazer o guri desistir da idéia, a morte era provável...não conseguiram...já tinha decidido no coração...ia pro porradal...ia pro tudo ou nada...queria sangue.
Epifânio estava diferente, estava....furioso!!
Pulou da varanda num só salto, já tocou o chão correndo pro portão. Seu Ardjan estava escorado no carro, em pé, com os pés um sobre o outro vendo aquela cena intensa...as mulheres gritando e chorando, os homens, com medo, não falavam nada, a mãe desesperada.
O Europeu se colocou na frente de Epifânio que parou...se olharam...o garoto tinha sangue nos olhos...nenhuma palavra...segundos eternos...aquele homem sabia que tinha uma dívida com o preto loiro...e que em algum momento precisaria pagar...de repente seu Ardjan, num movimento que misturava graça, força e atitude, levantou a camisa de meia com ambas as mãos, desnudando um tórax peludo, loiro e musculoso...se preparando pra porrada também...olhou pra Dona Betsie que virou levemente a cabeça pro lado com os olhinhos cheios de lágrimas e...concordou com a cabeça...Ankie gritou chorando.
Entrou no carro, o garoto entrou também!!!
Rapidamente fizeram a manobra pra virar o Ford ...e...   ...   ...adivinhem...   ...
...os valentes...
...guepardo e eu de frente pro carro com os braços cruzados e o peito estufado, 213 com o joelho esquerdo no chão, acocorado meio de lado com o cotovelo direito sobre a coxa direita, polegar sob o queixo, o indicador do lado do rosto apontando pra cima, e os outros dedos fechados na frente da boca, quase na posição de pensador, sobrancelha e camarão nas laterais em posição de aríates, multi-homem mais atrás de nós para, caso eles não parassem por bem, ele pararia o carro com pedras no vidro...
...era a matilha...
Epifanio gritou “-Saiam daí, já disse que não vai ninguém!!”.
E virando-se para o motorista do auto berrou “-Passa por eles agora!”
Ele não passou...não se atreveu...sabia que não deixaríamos nosso amigo ir sem nós...havia lealdade entre nós...e ...nossos pais que também tinham chegado à casa corriam em nossa direção, ou entrávamos no carro ou eles nos segurariam e não nos deixariam ir...entramos todos e o estrangeiro acelerou o Landau...
Oito saíram no carro...apenas três chegaram...durante o trajeto Epifânio tinha preparado a estratégia...sabia que estariam armados e iria desarmá-los primeiro.
Descemos do carro a uns 80 metros de onde aqueles homens bebiam, eram muitos, três mesas unidas com doze homens mal encarados... bêbados.
Caminhamos, o “loro”, o loiro....e eu...morrendo de medo. Cada um com sua arma...Epifânio com o porrete e a peixeira...Seu Ardjan com seu tamanho gigante e seus braços que mais pareciam minha coxa... Pela postura, aquele gigante dos Países Baixos parecia querer meter os “países baixos” dele no rabo de alguém que certamente iria aprender a língua batava lá no Suriname (País sul americano, fronteiriço ao Brasil onde se fala Holandês)....e eu...com uma chave de fenda que tirei do carro...
Os homens nos olharam e já sabiam o que queríamos...porrada! Se levantaram todos...armados com terçados, facas e punhais, mas nenhum com arma de fogo...doze...pararam enfileirados lado a lado na nossa frente...o Holandês de braços ligeiramente abertos mostrando o que tinha, Epifânio com suas armas e seus olhos vermelhos, eu mais atrás...três Espartanos prontos para a batalha.
De repente Epifânio, numa atitude que me desorientou, lançou longe a faca e o porrete...me olhou como quem mandando fazer o mesmo...joguei a chave de fenda também...os homens riram de nós...na certeza que nos amassariam no cacete, tiraram suas armas e lançaram no mesmo rumo que Epifânio jogou as suas...voaram em cima de nós aos gritos e nós sobre eles...nunca apanhei tanto em tão poucos segundos, mas dei uns socos também...uns dois...no momento em que se lançaram sobre nós com toda a força, seu Ardjan acertou alguns, Epifânio outros, eu ...um...mas...   ....saindo das árvores próximas aonde as armas tinham sido jogadas vieram o resto da matilha...pegaram as facas e com a rapidez dos lobos selvagens cortavam os nervos atrás de um dos joelhos dos ébrios garimpeiros, jarretando-os e aleijando-os pro resto da vida...só se ouvia seus gritos de dor e desespero por não conseguirem levantar e correr...estavam sangrando...aleijados...Epifânio quis pegar uma das facas e matar alguns, mas o Europeu abraçando com seu corpanzil não permitiu...e disse:
“-Chega Epifânio...eles não são mais homens!”
Os meninos vibravam com a vitória, eu, apesar de muito machucado e com um olho roxo, também estava satisfeito.
Entramos no carro e voltamos pra casa de Epifânio onde nossas famílias nos esperavam angustiados...fomos recebidos como heróis...Seu Ardjan abraçou e foi abraçado pela família, os garotos pelas suas, eu...bom...antes de ser levado pra casa sob esculhambação, recebi um longo e acalorado abraço de gratidão de Epifânio que sussurrou no meu ouvido...a partir de hoje...lhe chamarei de “valente”...chorei baixinho com a cara enfiada no ombro do amigo...
Quando se dirigia pro carro com a família, seu Ardjan foi chamado por Dona Cristina...virou-se, como também sua esposa...os olhares se cruzaram entre os três...e ela disse...”-obrigado”. Ao que o homem respondeu: “minha obrigação!”.
Todos foram embora...eu fui ficando...ficando...e quando estávamos só nós dois eu não me contive:
“-Por que o holandês quis pagar a dívida contigo dessa maneira, colocando a vida em risco na frente da família loro?”
Epifânio me lançou aquele olhar de bicho do mato, o pomo de Adão fez uma longa viagem até a goela e voltou...passou a língua pelos lábios, naquela ação de hidratá-los pela secura causada pela emoção de revelar outro segredo ultra secreto e atirou uma flecha certeira no meu coração.
“-Mano...nunca pintei o cabelo....sou loiro por herança paterna!”.

Por Ricardo Serrão.



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