quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Epifânio Augusto em: Epifania


Capítulo 5

Epifania

Epifânio passou pela sala onde o tio dormia, atravessou o pequeno corredor da casa até a cozinha que ficava nos fundos com porta para o quintal, desceu a escada de madeira, já muito apodrecida, mas não era tão alta, oito degraus, mal feitos degraus, alguns cuja lateral os pregos já não seguravam mais e a queda era iminente.

No quintal, sem iluminação alguma, pôde ver o brilho da Lua e das estrelas por entre as folhas do abacateiro, os pontos das estrelas vistos através daquele emaranhado de folhas escuras, que se movimentavam ao balanço de uma leve brisa, que mais parecia prenúncio de chuva, mas não era, pois não havia sequer uma nuvem a proteger a Lua e as estrelas daquele olhar de criança, pareciam vaga-lumes a bailar. Aquele olhar de criança...olhar de criança...embrutecida criança...olhando fixamente para um ponto a ermo sem contudo observar de fato qualquer brilho...parecia mais um olhar de quem vai à guerra, de quem quer lutar...

Sentou-se ao pé da grande árvore, agora de olhos fechados, como a pensar sobre alguma coisa, os olhos por trás das pálpebras se moviam pra lá e pra cá agitadamente como quem já está em luta...uma luta silenciosa... uma batalha travada na mente...com um oponente poderoso...de repente aqueles olhos de criança se abrem e o garoto se põe de pé e grita:

“-SAI DAÍ...VEM PRA FORA!!!!”

...Desafiava seu opositor a sair de sua mente e vir para uma luta corporal, no braço...(como se fazia antigamente)

-Tá magoado comigo? Tá com raivinha de mim? O que te fiz Deus? O que um garoto pode fazer contra Ti para que tu guardes tanta mágoa assim? POR QUE EEEEEUUUU DEUS??? Tu não tens nada de bom pra mim? Só dor e sofrimento? Meu Pai, meu tio, e agora...ela? (falou o “ela” tão baixinho que só Deus poderia ter ouvido mesmo).

-Me deixa em paz Deus...não quero nada contigo...alguém me disse que rezar era como conversar contigo, era como falar com um amigo...mentiram pra mim...tu nunca falou nada comigo, era sempre só eu que falava...tu nunca estavas lá comigo...   ...  ...eu tô acostumado com teu silêncio, com tua ausência, com tua indiferença...mas ...e ela? (baixinho novamente) tu tens prazer em fazer crianças sofrerem? Sofrerem nas mãos daqueles que deveriam protegê-las? Que tipo de Deus tu és? Não consigo nem dizer VAI EMBORA...tu não tá aqui...não te vejo...não te ouço...não te sinto...não quero mais saber de ti...

Com os punhos cerrados, respiração ofegante, o coração enegrecido, os olhos marejados pela dor de não poder proteger seu amor...    ...   ...cheio de ira...olhou para céu e sem se importar se alguém acordaria, gritou das profundas trevas de sua alma angustiada:

-DEEEEEEEUS ....EU TE .....não completou a frase...e aos prantos  puxou para junto do peito os punhos fechados, curvou o corpo para frente como quem não está agüentando a dor e o sofrimento e ....babando e soluçando descontroladamente falou bem baixinho....quase que inaudível: ...”-protege ela Deus...protege meu amor...por favor”.

Quedou-se...

Longo silêncio se seguiu a esse desabafo...de joelhos ao solo, com a cabeça agora abaixada e as mãos tocando o chão mostrava o quanto estava abatido e o quanto estava perdendo aquela batalha...   ...deitou-se no chão de barro...o vento continuava....as folhas agitavam-se mais agora... o rosto de lado tocando o solo, não tinha mais brilho nenhum pra se ver...adormeceu...

“-Epifânio!...   ...   ...Epifânio meu filho!”

Uma voz forte se pronunciava... forte, grave, mais de uma suavidade sem igual...

Epifânio teve a impressão de ser tocado no rosto...um terno toque...um toque de....pai.

Meio sem entender nada se levantou, limpou o rosto sujo de terra, o peito, a barriga e as pernas, e....parou, sem ver ninguém por perto, confuso...olhou de um lado...do outro...nada...ninguém....

“-Sobe na árvore Epifânio”.

O garoto ouviu a voz novamente, mas sem demonstrar nenhum medo, o que seria natural para qualquer um sentir...menos para Epifânio...ele não tinha medo de nada nem de ninguém...a não ser de vespa e poraquê...

Subiu. Num lance estava no topo do abacateiro, mas...não tinha ninguém lá...   ...de repente sentiu uma presença, uma....   ...   ...tipo...   ...  ...tinha alguém lá sim....tinha sim...ele viu por entre as folhas um brilho diferente, maior, um homem...não estava de branco...nem de preto, nem vestido de cor alguma...estava de.... caramba! Estava vestido de glória, ninguém precisava explicar a Epifânio o que era glória, glória não se explica...se vê...se vive...se tem...se é.

E agora as folhas pareciam abrir caminho para que Ele pudesse se mostrar pro garoto. Era Deus...   ....e Deus era...   ...índio...índio...moreno queimado, nariz largo, olhos profundos e sonolentos, baixinho...gordo...não...gordinho.

-Tu é índio!!!! ...eu sabia!! Exclamou o escurinho.

-Pois é...sou da forma que você sempre soube que eu era...ou sempre quis que eu fosse...-Sua vó conversou com um Capitão da Marinha há alguns dias...vestido com traje de gala...falou de você Epifânio.

-Foi? ...pensativo por uns dez segundos olhando fixamente pra Deus, disparou: -Ela mente às vezes, sabia? Acho que é a idade.

-Pare Epifânio. Não vou entrar em detalhes sobre a conversa com ela. E você? ....Revoltado?

-Não vou repetir nada do que falei...já falei o que eu tinha pra falar...quero respostas agora.

-Calma filho, você as terá, mas antes me permita falar-lhe algumas coisas. Nada me foge ao controle, todas as coisas sugerem uma força por trás, seja viva, inanimada, até morta. Nada se move sem uma força motriz, nada se criou sem a ação de alguma força maior...lembra? “EU”....Tudo o que você viveu com “ela” esteve sempre às minhas vistas, e sob meu controle. (Epifânio pensou: até o pum fedido? Então a culpa não foi dos cajus....foi Dele). Não a trouxe até você sem nenhum motivo, não pense que me alegro com o sofrimento de Dalila, ou com seu sofrimento Epifânio...não sou assim...mas sofrer faz parte do viver, e só sobrevive aquele que consegue suportar as pancadas que a vida dá...que são muitas e por vezes muito intensas e inacreditavelmente doloridas...mas passam...ah passam! Quando você deita e fecha os olhos e começa a falar comigo em seus pensamentos, eu paro o que tô fazendo só para dar atenção às suas palavras...confesso que nem sempre gosto do tom, mas sempre gosto da sinceridade, do coração despido de vaidades e mentiras...Lembra quando você disse: “DEUS É FODA”, lembra? Rsrs sou mesmo Epifânio, mas não de qualquer jeito, sou do jeito que você tinha no coração quando proferiu essas palavras...DEUS É FODA, no sentido de É O MÁXIMO...É TUDO....ELE É...   ...não sou o cara Epifânio....quando você for terminar novamente essas suas loucas verbosidades diga:  “ELE É ...   ....ELE É DEUS”. Não importa em quais circunstâncias Dalila surgiu pra você...ela não entrou na sua vida, ou está na sua vida...DALILA É VOCÊ...ETERNAMENTE VOCÊ. Vocês são o mesmo ser dividido em dois corpos e a MEU TEMPO esses corpos se fundirão e se tornarão um só...e produzirão outro ser...melhor.

-Filho? Perguntou Epifânio num misto de assustado e feliz.

-Você e suas perguntas já tão respondidas. Você de fato é homem.

-Como posso saber que o que o Senhor está falando é verdade? Às vezes chego a pensar que sei mais coisas que o Senhor, e que resolveria alguns problemas de maneira mais acertada. E olha que sou só uma criança.

-Exatamente Epifânio, você é homem e homens, não importa em que idade estejam, são sempre...crianças.

-Ah!...tá!...então tá!....   ...um Deus feminista...só falta ele dizer que as (é cortado abruptamente)

-Exatamente Epifânio, as mulheres evoluem, os homens apenas crescem. Viu como você, apesar de tão pouca idade, tem a ideia de que as mulheres são diferentes? Os homens nascem, crescem, eventualmente têm sorte e acertam, e morrem. As mulheres nascem, evoluem, eventualmente tomam uma decisão equivocada, consertam, e viram as melhores lembranças dos homens.

-Elas não morrem? Tá vendo, sei mais que Tu...já vi umas quatro mortas.

-Pergunte aos homens de suas vidas se estão mortas filho, e verás que todos terão uma boa palavra pra dizer sobre elas....uma boa lembrança.

-Dalila é tão triste que parece morrer a cada vez que...é...o Senhor sabe...não gosto nem de pensar nisso...pessoas que deviam protegê-la...em quem ela devia depositar toda a confiança...odeio cada um deles...tenho desejo de matá-los...matá-los muitas vezes. Eles a destruíram no corpo e na alma. Marcaram-na como quem marca um animal de pasto. E você não fez nada.

-Meu filho, tudo está sob meu controle. Disseste bem, feriram-lhe o corpo e a alma, mas ela tem um espírito forte, vai se reerguer. Cada vez que isso acontece, eu a torno mais forte, mas preparada para tratar outras pessoas que virão para a vida dela com problemas iguais ou similares. Tenha paciência filho meu.

-O Senhor não sabe muito, né? Pedindo paciência a um adolescente....vejo que tantos anos de idade não fez do Senhor lá muito inteligente não...isso prova que de fato os homens são a tua imagem e semelhança...não evoluem.

-Creia, ela é minha benção na vida de muitas pessoas, especialmente na sua lôro   ...e sobre ser inteligente...bom...realmente não sou muito inteligente....SOU DEUS. Você sabe o significado de seu nome?

-Menino lindo? Perguntou Epifânio.

-Hahahaha  Nãããão, claro que não. Você não é lindo, é apenas a metade menos favorecida de lindeza de Dalila, afinal, ela ficou com um bom bocado da beleza de vocês. Muito justo, concorda? Quando você estava no ventre de sua linda mãe, permiti que ela tivesse a visão desse nosso encontro, por isso o seu nome...Epifânio.

-Entendi nada!!!

-Já vou filho.

-Deus...Vou vê-la novamente? Quando? Onde?

-Sim...vai, mas até lá você também precisará ser preparado, e creia, no pilão.

-Se o Senhor permitir, sofro tudo o que tenho pra sofrer ...sofro tudo o que ela tem pra sofrer, só não quero mais que aconteça aquilo com ela.

E Deus secamente respondeu: -Basta!

O galo cantou cedo e Epifânio descobriu que havia dormido no quintal, no chão de barro, e estava sujo...pensou:

-Foi um sonho?

Olhou para o céu azul franzindo a testa com cara de quem já quer arrumar confusão de novo e pensou: -Você não teria coragem de me enganar desse jeito...teria?

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