Capítulo 5
Epifania
Epifânio passou pela sala onde o tio dormia,
atravessou o pequeno corredor da casa até a cozinha que ficava nos fundos com
porta para o quintal, desceu a escada de madeira, já muito apodrecida, mas não
era tão alta, oito degraus, mal feitos degraus, alguns cuja lateral os pregos
já não seguravam mais e a queda era iminente.
No quintal, sem iluminação alguma, pôde ver o brilho
da Lua e das estrelas por entre as folhas do abacateiro, os pontos das estrelas
vistos através daquele emaranhado de folhas escuras, que se movimentavam ao
balanço de uma leve brisa, que mais parecia prenúncio de chuva, mas não era,
pois não havia sequer uma nuvem a proteger a Lua e as estrelas daquele olhar de
criança, pareciam vaga-lumes a bailar. Aquele olhar de criança...olhar de criança...embrutecida
criança...olhando fixamente para um ponto a ermo sem contudo observar de fato
qualquer brilho...parecia mais um olhar de quem vai à guerra, de quem quer
lutar...
Sentou-se ao pé da grande árvore, agora de olhos
fechados, como a pensar sobre alguma coisa, os olhos por trás das pálpebras se
moviam pra lá e pra cá agitadamente como quem já está em luta...uma luta
silenciosa... uma batalha travada na mente...com um oponente poderoso...de
repente aqueles olhos de criança se abrem e o garoto se põe de pé e grita:
“-SAI DAÍ...VEM PRA FORA!!!!”
...Desafiava seu opositor a sair de sua mente e vir
para uma luta corporal, no braço...(como se fazia antigamente)
-Tá magoado comigo? Tá com raivinha de mim? O que te
fiz Deus? O que um garoto pode fazer contra Ti para que tu guardes tanta mágoa
assim? POR QUE EEEEEUUUU DEUS??? Tu não tens nada de bom pra mim? Só dor e
sofrimento? Meu Pai, meu tio, e agora...ela? (falou o “ela” tão baixinho que só
Deus poderia ter ouvido mesmo).
-Me deixa em paz Deus...não quero nada
contigo...alguém me disse que rezar era como conversar contigo, era como falar
com um amigo...mentiram pra mim...tu nunca falou nada comigo, era sempre só eu
que falava...tu nunca estavas lá comigo...
... ...eu tô acostumado com teu
silêncio, com tua ausência, com tua indiferença...mas ...e ela? (baixinho
novamente) tu tens prazer em fazer crianças sofrerem? Sofrerem nas mãos
daqueles que deveriam protegê-las? Que tipo de Deus tu és? Não consigo nem
dizer VAI EMBORA...tu não tá aqui...não te vejo...não te ouço...não te
sinto...não quero mais saber de ti...
Com os punhos cerrados, respiração ofegante, o
coração enegrecido, os olhos marejados pela dor de não poder proteger seu
amor... ... ...cheio de ira...olhou para céu e sem se
importar se alguém acordaria, gritou das profundas trevas de sua alma
angustiada:
-DEEEEEEEUS ....EU TE .....não completou a frase...e
aos prantos puxou para junto do peito os
punhos fechados, curvou o corpo para frente como quem não está agüentando a dor
e o sofrimento e ....babando e soluçando descontroladamente falou bem
baixinho....quase que inaudível: ...”-protege ela Deus...protege meu amor...por
favor”.
Quedou-se...
Longo silêncio se seguiu a esse desabafo...de
joelhos ao solo, com a cabeça agora abaixada e as mãos tocando o chão mostrava
o quanto estava abatido e o quanto estava perdendo aquela batalha... ...deitou-se no chão de barro...o vento continuava....as
folhas agitavam-se mais agora... o rosto de lado tocando o solo, não tinha mais
brilho nenhum pra se ver...adormeceu...
“-Epifânio!...
... ...Epifânio meu filho!”
Uma voz forte se pronunciava... forte, grave, mais
de uma suavidade sem igual...
Epifânio teve a impressão de ser tocado no
rosto...um terno toque...um toque de....pai.
Meio sem entender nada se levantou, limpou o rosto
sujo de terra, o peito, a barriga e as pernas, e....parou, sem ver ninguém por
perto, confuso...olhou de um lado...do outro...nada...ninguém....
“-Sobe na árvore Epifânio”.
O garoto ouviu a voz novamente, mas sem demonstrar
nenhum medo, o que seria natural para qualquer um sentir...menos para
Epifânio...ele não tinha medo de nada nem de ninguém...a não ser de vespa e
poraquê...
Subiu. Num lance estava no topo do abacateiro,
mas...não tinha ninguém lá... ...de
repente sentiu uma presença, uma....
... ...tipo... ...
...tinha alguém lá sim....tinha sim...ele viu por entre as folhas um
brilho diferente, maior, um homem...não estava de branco...nem de preto, nem
vestido de cor alguma...estava de.... caramba! Estava vestido de glória,
ninguém precisava explicar a Epifânio o que era glória, glória não se
explica...se vê...se vive...se tem...se é.
E agora as folhas pareciam abrir caminho para que
Ele pudesse se mostrar pro garoto. Era Deus...
....e Deus era...
...índio...índio...moreno queimado, nariz largo, olhos profundos e
sonolentos, baixinho...gordo...não...gordinho.
-Tu é índio!!!! ...eu sabia!! Exclamou o escurinho.
-Pois é...sou da forma que você sempre soube que eu
era...ou sempre quis que eu fosse...-Sua vó conversou com um Capitão da Marinha
há alguns dias...vestido com traje de gala...falou de você Epifânio.
-Foi? ...pensativo por uns dez segundos olhando
fixamente pra Deus, disparou: -Ela mente às vezes, sabia? Acho que é a idade.
-Pare Epifânio. Não vou entrar em detalhes sobre a
conversa com ela. E você? ....Revoltado?
-Não vou repetir nada do que falei...já falei o que
eu tinha pra falar...quero respostas agora.
-Calma filho, você as terá, mas antes me permita falar-lhe algumas coisas.
Nada me foge ao controle, todas as coisas sugerem uma força por trás, seja
viva, inanimada, até morta. Nada se move sem uma força motriz, nada se criou
sem a ação de alguma força maior...lembra? “EU”....Tudo o que você viveu com
“ela” esteve sempre às minhas vistas, e sob meu controle. (Epifânio pensou: até
o pum fedido? Então a culpa não foi dos cajus....foi Dele). Não a trouxe até
você sem nenhum motivo, não pense que me alegro com o sofrimento de Dalila, ou
com seu sofrimento Epifânio...não sou assim...mas sofrer faz parte do viver, e
só sobrevive aquele que consegue suportar as pancadas que a vida dá...que são
muitas e por vezes muito intensas e inacreditavelmente doloridas...mas
passam...ah passam! Quando você deita e fecha os olhos e começa a falar comigo
em seus pensamentos, eu paro o que tô fazendo só para dar atenção às suas
palavras...confesso que nem sempre gosto do tom, mas sempre gosto da
sinceridade, do coração despido de vaidades e mentiras...Lembra quando você
disse: “DEUS É FODA”, lembra? Rsrs sou mesmo Epifânio, mas não de qualquer
jeito, sou do jeito que você tinha no coração quando proferiu essas
palavras...DEUS É FODA, no sentido de É O MÁXIMO...É TUDO....ELE É... ...não sou o cara Epifânio....quando você
for terminar novamente essas suas loucas verbosidades diga: “ELE É ...
....ELE É DEUS”. Não importa em quais circunstâncias Dalila surgiu pra
você...ela não entrou na sua vida, ou está na sua vida...DALILA É
VOCÊ...ETERNAMENTE VOCÊ. Vocês são o mesmo ser dividido em dois corpos e a MEU
TEMPO esses corpos se fundirão e se tornarão um só...e produzirão outro
ser...melhor.
-Filho? Perguntou Epifânio num misto de assustado e
feliz.
-Você e suas perguntas já tão respondidas. Você de fato
é homem.
-Como posso saber que o que o Senhor está falando é
verdade? Às vezes chego a pensar que sei mais coisas que o Senhor, e que
resolveria alguns problemas de maneira mais acertada. E olha que sou só uma
criança.
-Exatamente Epifânio, você é homem e homens, não
importa em que idade estejam, são sempre...crianças.
-Ah!...tá!...então tá!.... ...um Deus feminista...só falta ele dizer
que as (é cortado abruptamente)
-Exatamente Epifânio, as mulheres evoluem, os homens
apenas crescem. Viu como você, apesar de tão pouca idade, tem a ideia de que as
mulheres são diferentes? Os homens nascem, crescem, eventualmente têm sorte e
acertam, e morrem. As mulheres nascem, evoluem, eventualmente tomam uma decisão
equivocada, consertam, e viram as melhores lembranças dos homens.
-Elas não morrem? Tá vendo, sei mais que Tu...já vi
umas quatro mortas.
-Pergunte aos homens de suas vidas se estão mortas
filho, e verás que todos terão uma boa palavra pra dizer sobre elas....uma boa
lembrança.
-Dalila é tão triste que parece morrer a cada vez
que...é...o Senhor sabe...não gosto nem de pensar nisso...pessoas que deviam
protegê-la...em quem ela devia depositar toda a confiança...odeio cada um
deles...tenho desejo de matá-los...matá-los muitas vezes. Eles a destruíram no
corpo e na alma. Marcaram-na como quem marca um animal de pasto. E você não fez
nada.
-Meu filho, tudo está sob meu controle. Disseste
bem, feriram-lhe o corpo e a alma, mas ela tem um espírito forte, vai se
reerguer. Cada vez que isso acontece, eu a torno mais forte, mas preparada para
tratar outras pessoas que virão para a vida dela com problemas iguais ou
similares. Tenha paciência filho meu.
-O Senhor não sabe muito, né? Pedindo paciência a um
adolescente....vejo que tantos anos de idade não fez do Senhor lá muito
inteligente não...isso prova que de fato os homens são a tua imagem e
semelhança...não evoluem.
-Creia, ela é minha benção na vida de muitas
pessoas, especialmente na sua lôro ...e
sobre ser inteligente...bom...realmente não sou muito inteligente....SOU DEUS.
Você sabe o significado de seu nome?
-Menino lindo? Perguntou Epifânio.
-Hahahaha Nãããão,
claro que não. Você não é lindo, é apenas a metade menos favorecida de lindeza
de Dalila, afinal, ela ficou com um bom bocado da beleza de vocês. Muito justo,
concorda? Quando você estava no ventre de sua linda mãe, permiti que ela
tivesse a visão desse nosso encontro, por isso o seu nome...Epifânio.
-Entendi nada!!!
-Já vou filho.
-Deus...Vou vê-la novamente? Quando? Onde?
-Sim...vai, mas até lá você também precisará ser
preparado, e creia, no pilão.
-Se o Senhor permitir, sofro tudo o que tenho pra
sofrer ...sofro tudo o que ela tem pra sofrer, só não quero mais que aconteça
aquilo com ela.
E Deus secamente respondeu: -Basta!
O galo cantou cedo e Epifânio descobriu que havia
dormido no quintal, no chão de barro, e estava sujo...pensou:
-Foi um sonho?
Olhou para o céu azul franzindo a testa com cara de
quem já quer arrumar confusão de novo e pensou: -Você não teria coragem de me
enganar desse jeito...teria?
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