quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Epifânio Augusto em: Preconceito.

Capítulo VIII

Preconceito.

O futebol corria solto no campinho do alto do barranco na beira do rio, era um bom campinho, o único problema era que quando a bola era chutada muito forte alguém tinha que correr muito rápido para que não caísse lá embaixo no rio, pois quem chutava tinha que ir buscar na água e era bem alto, o cara tinha que fazer o resgate e jogar a bola, quando chegava em cima mortinho, quase sempre encontrava outro no lugar dele correndo atrás da pelota. Todos sabiam jogar bola direitinho, menos Epifânio, era o mais “perna de pau” da turma. Certa feita, durante um campeonato de várzea entre adolescentes indígenas e nós, foi bater um tiro de meta e furou um gol contra...ah bicho burro!!!!! por isso preferia ficar olhando o movimento, mas sempre estava conosco, mesmo não jogando.
Uma tarde a pelada corria solta e ele estava na beira do barranco olhando o rio...alheio ao que acontecia nas quatro linhas, kkk como se tivesse alguma linha, o campinho era como qualquer outro, a bola saia quando passava da parte de areia pra parte de capim, que nada tinha a ver com grama, e do outro lado pela linha imaginária que se estendia por todo o campo entre o jambeiro e o pé de jenipapo. Aproximei-me e perguntei. - O que foi lôro? Ele apontou com a cabeça lá pro meio do rio, onde uma lancha passava rápido pra lá e pra cá rebocando uma menina numa prancha de wakeboard...novidade na época...era Ankie...filha de Dona Betsie e Seu Ardjan, uns Holandeses que vieram pro Brasil com o intuito de plantar mogno e fazer a extração dentro de 30 anos, haviam comprado um bom pedaço de chão numa área a uns 25 km de onde morávamos, mas tinham casa na cidade. Eram todos muito brancos, loiros e de olhos azuis como bolinha de gude colombiana.
Quando tínhamos 10 anos mais ou menos, Ankie estudava no mesmo grupo escolar que nós e um dia fomos até a casa dela pra tomar limonada depois da aula, no fim da tarde. Seu Ardjan não estava e ainda não havíamos trocado nenhuma palavra com ele. Não demorou e aquele homenzarrão chegou, muito vermelho do sol, barba grande, loira e cheia, cabelo longo, loiro e volumoso...assanhado...parecia um...sei lá....um...”sasquatch holandês”...O homem foi chegando e olhando pro Epifânio com cara de mal, de quem não gostou do que viu em casa...muito sério disse pra mulher:
- O que esse negro, filho de uma macaca tá fazendo na minha casa? Vai acabar roubando alguma coisa daqui.
Gelei de medo, acho que Epifânio também gelou, a mulher tentou falar alguma coisa e ele já foi puxando meu amigo pelo braço até a porta da rua, nem tentei ajudar, não podia fazer nada, apenas sair também, a menina envergonhada começou a chorar dizendo que estudávamos com ela e que ela é que tinha nos convidado para tomar um lanche. O pai bruto deu um tapa na boca da menina.
Epifânio gritou pra não fazer aquilo com ela, que ele já estava indo embora, mas aquela montanha branca não deu ouvidos e desferiu outro tapa na filha. –Erro dele...Epifânio voou sobre aquele corpo enorme, aos berros, tentando acertar algum golpe...o homem pegou aquele corpo escuro franzino pelo pescoço, levantou até à altura da cabeça, ele esperneando, e disse:
-Nunca mais ponha os pés na minha casa negro fedorento. E deu um soco no estômago de meu amigo, que caiu se contorcendo de dor, chorando. Meu Deus, olha o tamanho dele...o que nós fizemos de errado?
Entraram, a menina aos berros, a mãe chorava sem nada dizer, apenas nos olhava com cara de dó...
Levantei Epifânio que chorava muito, sentia muita dor e mal conseguia andar. No caminho pra casa ele disse que eu não devia contar o que aconteceu pra ninguém, pra ninguém...estava com vergonha...o homem bateu nele só porque ele era preto...não entendia isso...não podia fazer nada quanto a isso...era preto e pronto.
Meu amiguinho adoeceu por dias, a família não sabia o que ele tinha, teve febre alta, calafrios, choros incontidos e involuntários...não falou pra ninguém o que aconteceu...foi tratado como se estivesse com malária...ficou bom...mesmo criança era duro de entortar.
Um dia estávamos reunidos na praça relembrando as aventuras, as anedotas, as mentiras sobre as garotas, sobre as pescarias, sobre as caçadas, kkkk, na verdade mentíamos sobre tudo, mas todos sabiam o que era e o que não era verdade.
Lembramos da vez que um carro forte estava passando na cidade e parou num restaurante da estrada para que os seguranças fizessem a refeição. Estávamos vendo os cartazes dos filmes que foram lançados na locadora de vídeo perto daquele lugar, Rambo-Programado para matar e Conan o Bárbaro, era mês de junho. Multi-homem tinha conseguido 2 mangos e dava pra alugar 3 fitas, aí íamos lá pra casa da tia Nazaré que tinha vídeo cassete e rebobinadora...ela era meio rica.
Enquanto olhávamos os cartazes ouvimos tiros POW, POW, POW, POW!!!!...foi um susto coletivo, os homens da segurança do carro forte se jogaram no chão sacando suas armas e virando as mesas, e apontavam pra todo mundo, aí quem se via na mira deles também se jogava no chão, eita pau!! Foi uma onda, corremos pra trás da locadora e adivinhem...encontramos Epifânio preparando a próxima saraivada de catolé a serem jogados no rumo do restaurante...-FILHOTE DO CAPETA O QUE TU TÁ FAZENDO MANO, TU TÁ DOIDO, DOIDO?!!!! Perguntei não acreditando no que via, os outros começaram a rir da arte e ele não esboçava um sorriso sequer, parecia que estava vivendo uma aventura no faroeste com Jhon Wayne contra um monte de índios cherokees...com a maior cara de pau do planeta terra...e do planeta marte também...e de vênus, de júpiter até do sol, o cãopirôto falou: Mano eu tava doido pra ver o que esses caras fazem quando acontece um assalto com eles! Não resisti, tô cheio de catolé no bolso, ajudaí ajudaí!!! Ora, quem tá na chuva é pra se molhar mesmo, né?
Foi uma farra aquela tarde. Acredito que tenha sido a pior refeição da vida daqueles seguranças. Sumimos no trecho.
E na vez que fomos tomar banho na cachoeira do profano, tinha chovido muito durante a manhã e a água que caia estava forte demais, parecia coisa de cinema, linda, poderosa, perigosa e fatal. Tinha muito guri nesse dia, acho que uns 15 pivetes, a maioria não quis entrar, com medo, e ficaram na beira do igarapé. A queda devia ter uns 3 metros de altura, mas naquele dia pericia ter 30 de tão forte que estava. O loiríssimo encapetado Cortez de Sena achou de se exibir. Foi lá pra cima, um pouco distante da queda d’água, onde a correnteza estava menos forte, mas igualmente perigosa, e tentou atravessar pra outra margem, escorregou nas pedras do fundo, caiu e não teve ação de se levantar e tentar se apegar a alguma coisa...estávamos no pé do barranco quando ouvimos o grito –SOCOOOOORROOOOO!!!! Kkkkk já era...caiu mano...só vimos aquela mancha preta, com as pernas pro ar, sendo lançada lá no alto da cascata, parecia um tronco de madeira estragado, hahahahaha, caiu e afundou de vez, com a força da água que caía não dava nem pra subir, uns riam, outros gritavam que ele ia morrer, que alguém tinha que pular pra tentar tirá-lo do turbilhão, mas....QUEM? aquele redemoinho estava infernal...(hum...se estava infernal ele estava em casa)...de repente o moleque sai do rebojo, e vai sendo arrastado pelas águas sem ter como se apoiar em nada...nós, os amigos, fomos atrás pra ver se conseguíamos parar aquele tição dos infernos...a uns 150 metros riacho abaixo lá estava ele...segurando num cipó de árvore caído, com os olhos arregalados, assustado, só com a cara de fora da água, e do outro lado do igarapé...ainda achou de parar do outro lado do igarapé, (ôô coisinha sinistra!)...nos olhava como quem dissesse...FIZ MERDA GALERA! Ríamos da cara dele, e pela alegria de que estivesse vivo e sem ter se machucado...gritamos:
Sai daí, vamos descer mais e nos encontramos no sítio do seu Mundico, abestado!
Ele ficou parado olhando pra nós...dentro dágua...zoião...ficamos intrigados...de repente ele saiu da água...estava nu..kkkkkkkk o calção do animal tinha sido levado pelas águas, hahahahaha, isso só podia acontecer com ele mesmo...aquela bunda preta saindo da água, parecia coisa de filme de terror, nós ríamos sem freio...ele virou a cabeça  de lado, olhou pra nós e fez aquele sinal com o dedo na boca de psssssiiii....como que dizendo: silêncio gente...por favor...é segredo hein! Tratamos de arrumar uma camisa pra ele se enrolar até chegar em casa.
Nesse dia em que estávamos nessas lembranças, Ankie e sua família pararam o carro do pai na sorveteria do outro lado da praça, desceram e Epifânio não desgrudava os olhos dele...os outros perguntaram o que tava acontecendo, porque ele não tirava os olhos da família da coleguinha da escola....ele me olhou como se dissesse “eles merecem saber, são amigos também, são da turma” e contou o que acontecera anos antes com seu Ardjan, pai da menina. Os meninos ficaram irados, multi-homem disse: “-vamos tocar fogo na casa deles, com todos eles dentro da casa” –Meu Deus, não Manel, o que é isso? Nós não somos bandidos, não é mesmo Epifânio?” virei-me perguntando do lôro. ...ele me olhou....fiquei confuso...ele não poderia estar pensando em fazer aquilo que foi sugerido....   ...   ...-NÃO, NÃO SOMOS BANDIDOS MANO...resperei aliviado....e completou: -Mas ainda terei minha vingança.
A pelada estava no fim e os garotos se chegavam pra perto de nós na beira do barranco que devia medir uns 10 metros de altura...era alto demais...e o rio era bem fundo...tudo ali era perigoso. Éramos agora sete observando a lancha pra lá e pra cá. Mas nenhum estava feliz com a felicidade que aquela menina parecia sentir naquele momento. De repente, numa manobra em que o pai se aproximava da margem e jogava a lancha de volta pro meio do rio para a menina deslizar bem rés à prainha, a lancha bateu num tronco submerso e jogou o pai da menina bem longe da margem...no embalo a garota deslizou até a areia...vibramos bem alto com aquilo, como se comemorássemos um gol do Zico na seleção...PEEEEGGAAAAAAA!!!!!! a menina começou a gritar por socorro...não entendíamos bem, mas parecia dizer que o pai estava se afogando...foi aí que notamos a luta daquele homem enorme pra se manter sobre a linha dágua, ele afundava com os braços erguidos e emergia novamente, Multi-homem chegou a comentar:-É a justiça de Deus seu escroto...aguenta!! O pai da menina estava se afogando mesmo...àquela hora não tinha mais ninguém para ajudar, a menina não parava de gritar por socorro...desesperada...demos as costas ao barranco e fomos andando rumo à vila...os gritos da menina ecoavam pelo ar –SOCOOOORROOOOOO MEU PAI TÁ SE AFOGANDO, ALGUÉM ACODE PELO AMOR DE DEUS!!!
Os meninos tapavam os ouvidos para não ouvir a garota...caminhávamos como se nada estivesse acontecendo de grave...como quem vai à feira comprar tutano pra colocar na sopa.
Olhei para Epifânio, cuja respiração agora começava a ficar ofegante, os olhos marejando como quem sabe o que deve ser feito, mas não quer fazer, as mãos passando apertada por toda a extensão da cabeça....o coração em chamas...parou.
E como quem já decidiu por fazer a coisa certa antes mesmo que aquele neguinho se manifestasse, eu disse:
-Epifânio...   ....   ....você não é assim!
Ele nos olhou nos olhos, a boca aberta soltando o ar, o peito se enchendo e se esvaziando em longas puxadas de oxigênio, as mãos fechando e abrindo como em posição de socar...as pernas pareciam estar nervosas...todos estávamos nervosos...  ...   ...e no exato momento em que ouvimos o grito mais alto da pequena Ankie....PAAAAAAIIIIII! ....a ordem veio...
GAROTOS.....VAMOS VOAAAAR!!!!!
E saiu correndo como um raio de volta ao barranco... sem olhar pra trás e ver que todos estávamos com ele... todos queríamos voar.... voou....como um gavião negro....braços abertos, cabeça erguida como quem olha para onde quer chegar....e fechando os braços como um super herói...furou a água...tchuf!!
Todos voamos....éramos seis pardais em sua cola...todos sentimos a mesma emoção....se Epifânio saltasse para a cratera de um vulcão em erupção iríamos com ele...era assim...contagiante...nem pensávamos...era como se confiássemos a vida a ele, se ele estivesse na coisa tínhamos a certeza que daria certo...
Nadando rápido como sabia nadar, chegou ao já cansado de lutar “gorila holandês” que ainda se debatia tomando muita água....Epifânio sabia que se pegasse o gigante ele, no desespero, iria se atracar ao garoto e ambos se afogariam...esperou por alguns segundos e, fechando a mão, num momento em que aquele senhor emergiu com água nos olhos sem poder ver muito, Epifânio deu um soco da lateral com toda a força...da direita para a esquerda, na ponta do queixo do pai de Ankie...ele desmaiou...Epifânio tratou de pegá-lo por trás, pelo cangote, deixando a cabeça do homem pra fora dágua, para que pudesse continuar em condições de respirar, chegamos para ajudá-lo....um trabalho em equipe...o levamos para a margem...ele estava desacordado, mas vivo e respirando...tinha engolido muita água, mas não morreria...todos estávamos cansados daquilo...menos Epifânio...em pé...olhando o holandês com a filha chorando abraçada ao pescoço do pai que acordara e retribuía o fraterno abraço...com muita dificuldade o homem levantou-se, nos olhou, com aqueles olhos azuis da cor do céu... os seis atrás de Epifânio, seis valentes....Epifânio sabia que aquele homem tinha consciência do que fizera a ele quando criança e que agora estava em dívida de vida, mas...não era fácil para um adulto, em frente à filha, se humilhar pedindo perdão a um jovem adolescente, nem Epifânio queria isso...honradamente, lôro estendeu a mão para o Seu Ardjan, como que dizendo...-Eu o perdôo!...o holandês...chorando...estendeu a mão, puxou o menino para si e lhe deu um forte e calôroso abraço de gratidão, de quem pede perdão...um abraço de amigo...
Relembrando essas histórias, algo me vem à mente. Epifânio não sabia jogar bola, seu talento não era com os pés.

                                                                                              ....   ...   ...era com o coração.



Por Ricardo Serrão


Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera coincidência.


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