Capítulo VIII
Preconceito.
O futebol corria solto no
campinho do alto do barranco na beira do rio, era um bom campinho, o único
problema era que quando a bola era chutada muito forte alguém tinha que correr
muito rápido para que não caísse lá embaixo no rio, pois quem chutava tinha que
ir buscar na água e era bem alto, o cara tinha que fazer o resgate e jogar a
bola, quando chegava em cima mortinho, quase sempre encontrava outro no lugar
dele correndo atrás da pelota. Todos sabiam jogar bola direitinho, menos
Epifânio, era o mais “perna de pau” da turma. Certa feita, durante um
campeonato de várzea entre adolescentes indígenas e nós, foi bater um tiro de
meta e furou um gol contra...ah bicho burro!!!!! por isso preferia ficar
olhando o movimento, mas sempre estava conosco, mesmo não jogando.
Uma tarde a pelada corria solta e
ele estava na beira do barranco olhando o rio...alheio ao que acontecia nas
quatro linhas, kkk como se tivesse alguma linha, o campinho era como qualquer
outro, a bola saia quando passava da parte de areia pra parte de capim, que
nada tinha a ver com grama, e do outro lado pela linha imaginária que se
estendia por todo o campo entre o jambeiro e o pé de jenipapo. Aproximei-me e
perguntei. - O que foi lôro? Ele apontou com a cabeça lá pro meio do rio, onde
uma lancha passava rápido pra lá e pra cá rebocando uma menina numa prancha de
wakeboard...novidade na época...era Ankie...filha de Dona Betsie e Seu Ardjan,
uns Holandeses que vieram pro Brasil com o intuito de plantar mogno e fazer a
extração dentro de 30 anos, haviam comprado um bom pedaço de chão numa área a
uns 25 km de onde morávamos, mas tinham casa na cidade. Eram todos muito
brancos, loiros e de olhos azuis como bolinha de gude colombiana.
Quando tínhamos 10 anos mais ou
menos, Ankie estudava no mesmo grupo escolar que nós e um dia fomos até a casa
dela pra tomar limonada depois da aula, no fim da tarde. Seu Ardjan não estava
e ainda não havíamos trocado nenhuma palavra com ele. Não demorou e aquele
homenzarrão chegou, muito vermelho do sol, barba grande, loira e cheia, cabelo
longo, loiro e volumoso...assanhado...parecia um...sei lá....um...”sasquatch
holandês”...O homem foi chegando e olhando pro Epifânio com cara de mal, de
quem não gostou do que viu em casa...muito sério disse pra mulher:
- O que esse negro, filho de uma
macaca tá fazendo na minha casa? Vai acabar roubando alguma coisa daqui.
Gelei de medo, acho que Epifânio
também gelou, a mulher tentou falar alguma coisa e ele já foi puxando meu amigo
pelo braço até a porta da rua, nem tentei ajudar, não podia fazer nada, apenas
sair também, a menina envergonhada começou a chorar dizendo que estudávamos com
ela e que ela é que tinha nos convidado para tomar um lanche. O pai bruto deu
um tapa na boca da menina.
Epifânio gritou pra não fazer
aquilo com ela, que ele já estava indo embora, mas aquela montanha branca não
deu ouvidos e desferiu outro tapa na filha. –Erro dele...Epifânio voou sobre
aquele corpo enorme, aos berros, tentando acertar algum golpe...o homem pegou
aquele corpo escuro franzino pelo pescoço, levantou até à altura da cabeça, ele
esperneando, e disse:
-Nunca mais ponha os pés na minha
casa negro fedorento. E deu um soco no estômago de meu amigo, que caiu se
contorcendo de dor, chorando. Meu Deus, olha o tamanho dele...o que nós fizemos
de errado?
Entraram, a menina aos berros, a
mãe chorava sem nada dizer, apenas nos olhava com cara de dó...
Levantei Epifânio que chorava
muito, sentia muita dor e mal conseguia andar. No caminho pra casa ele disse
que eu não devia contar o que aconteceu pra ninguém, pra ninguém...estava com
vergonha...o homem bateu nele só porque ele era preto...não entendia isso...não
podia fazer nada quanto a isso...era preto e pronto.
Meu amiguinho adoeceu por dias, a
família não sabia o que ele tinha, teve febre alta, calafrios, choros
incontidos e involuntários...não falou pra ninguém o que aconteceu...foi
tratado como se estivesse com malária...ficou bom...mesmo criança era duro de
entortar.
Um dia estávamos reunidos na
praça relembrando as aventuras, as anedotas, as mentiras sobre as garotas,
sobre as pescarias, sobre as caçadas, kkkk, na verdade mentíamos sobre tudo,
mas todos sabiam o que era e o que não era verdade.
Lembramos da vez que um carro
forte estava passando na cidade e parou num restaurante da estrada para que os
seguranças fizessem a refeição. Estávamos vendo os cartazes dos filmes que
foram lançados na locadora de vídeo perto daquele lugar, Rambo-Programado para
matar e Conan o Bárbaro, era mês de junho. Multi-homem tinha conseguido 2
mangos e dava pra alugar 3 fitas, aí íamos lá pra casa da tia Nazaré que tinha
vídeo cassete e rebobinadora...ela era meio rica.
Enquanto olhávamos os cartazes
ouvimos tiros POW, POW, POW, POW!!!!...foi um susto coletivo, os homens da
segurança do carro forte se jogaram no chão sacando suas armas e virando as
mesas, e apontavam pra todo mundo, aí quem se via na mira deles também se
jogava no chão, eita pau!! Foi uma onda, corremos pra trás da locadora e
adivinhem...encontramos Epifânio preparando a próxima saraivada de catolé a serem
jogados no rumo do restaurante...-FILHOTE DO CAPETA O QUE TU TÁ FAZENDO MANO,
TU TÁ DOIDO, DOIDO?!!!! Perguntei não acreditando no que via, os outros
começaram a rir da arte e ele não esboçava um sorriso sequer, parecia que
estava vivendo uma aventura no faroeste com Jhon Wayne contra um monte de
índios cherokees...com a maior cara de pau do planeta terra...e do planeta
marte também...e de vênus, de júpiter até do sol, o cãopirôto falou: Mano eu
tava doido pra ver o que esses caras fazem quando acontece um assalto com eles!
Não resisti, tô cheio de catolé no bolso, ajudaí ajudaí!!! Ora, quem tá na
chuva é pra se molhar mesmo, né?
Foi uma farra aquela tarde.
Acredito que tenha sido a pior refeição da vida daqueles seguranças. Sumimos no
trecho.
E na vez que fomos tomar banho na
cachoeira do profano, tinha chovido muito durante a manhã e a água que caia
estava forte demais, parecia coisa de cinema, linda, poderosa, perigosa e
fatal. Tinha muito guri nesse dia, acho que uns 15 pivetes, a maioria não quis
entrar, com medo, e ficaram na beira do igarapé. A queda devia ter uns 3 metros
de altura, mas naquele dia pericia ter 30 de tão forte que estava. O loiríssimo
encapetado Cortez de Sena achou de se exibir. Foi lá pra cima, um pouco
distante da queda d’água, onde a correnteza estava menos forte, mas igualmente
perigosa, e tentou atravessar pra outra margem, escorregou nas pedras do fundo,
caiu e não teve ação de se levantar e tentar se apegar a alguma
coisa...estávamos no pé do barranco quando ouvimos o grito –SOCOOOOORROOOOO!!!!
Kkkkk já era...caiu mano...só vimos aquela mancha preta, com as pernas pro ar,
sendo lançada lá no alto da cascata, parecia um tronco de madeira estragado,
hahahahaha, caiu e afundou de vez, com a força da água que caía não dava nem pra
subir, uns riam, outros gritavam que ele ia morrer, que alguém tinha que pular
pra tentar tirá-lo do turbilhão, mas....QUEM? aquele redemoinho estava
infernal...(hum...se estava infernal ele estava em casa)...de repente o moleque
sai do rebojo, e vai sendo arrastado pelas águas sem ter como se apoiar em
nada...nós, os amigos, fomos atrás pra ver se conseguíamos parar aquele tição
dos infernos...a uns 150 metros riacho abaixo lá estava ele...segurando num
cipó de árvore caído, com os olhos arregalados, assustado, só com a cara de
fora da água, e do outro lado do igarapé...ainda achou de parar do outro lado
do igarapé, (ôô coisinha sinistra!)...nos olhava como quem dissesse...FIZ MERDA
GALERA! Ríamos da cara dele, e pela alegria de que estivesse vivo e sem ter se
machucado...gritamos:
Sai daí, vamos descer mais e nos
encontramos no sítio do seu Mundico, abestado!
Ele ficou parado olhando pra
nós...dentro dágua...zoião...ficamos intrigados...de repente ele saiu da
água...estava nu..kkkkkkkk o calção do animal tinha sido levado pelas águas,
hahahahaha, isso só podia acontecer com ele mesmo...aquela bunda preta saindo
da água, parecia coisa de filme de terror, nós ríamos sem freio...ele virou a
cabeça de lado, olhou pra nós e fez aquele sinal com o dedo na boca de
psssssiiii....como que dizendo: silêncio gente...por
favor...é segredo hein! Tratamos de arrumar uma camisa pra ele se enrolar até
chegar em casa.
Nesse dia em que estávamos nessas
lembranças, Ankie e sua família pararam o carro do pai na sorveteria do outro
lado da praça, desceram e Epifânio não desgrudava os olhos dele...os outros
perguntaram o que tava acontecendo, porque ele não tirava os olhos da família
da coleguinha da escola....ele me olhou como se dissesse “eles merecem saber,
são amigos também, são da turma” e contou o que acontecera anos antes com seu
Ardjan, pai da menina. Os meninos ficaram irados, multi-homem disse: “-vamos
tocar fogo na casa deles, com todos eles dentro da casa” –Meu Deus, não Manel,
o que é isso? Nós não somos bandidos, não é mesmo Epifânio?” virei-me
perguntando do lôro. ...ele me olhou....fiquei confuso...ele não poderia estar
pensando em fazer aquilo que foi sugerido.... ...
...-NÃO, NÃO SOMOS BANDIDOS MANO...resperei aliviado....e completou: -Mas ainda
terei minha vingança.
A pelada estava no fim e os
garotos se chegavam pra perto de nós na beira do barranco que devia medir uns
10 metros de altura...era alto demais...e o rio era bem fundo...tudo ali era
perigoso. Éramos agora sete observando a lancha pra lá e pra cá. Mas nenhum
estava feliz com a felicidade que aquela menina parecia sentir naquele momento.
De repente, numa manobra em que o pai se aproximava da margem e jogava a lancha
de volta pro meio do rio para a menina deslizar bem rés à prainha, a lancha
bateu num tronco submerso e jogou o pai da menina bem longe da margem...no
embalo a garota deslizou até a areia...vibramos bem alto com aquilo, como se
comemorássemos um gol do Zico na seleção...PEEEEGGAAAAAAA!!!!!! a menina
começou a gritar por socorro...não entendíamos bem, mas parecia dizer que o pai
estava se afogando...foi aí que notamos a luta daquele homem enorme pra se
manter sobre a linha dágua, ele afundava com os braços erguidos e emergia
novamente, Multi-homem chegou a comentar:-É a justiça de Deus seu
escroto...aguenta!! O pai da menina estava se afogando mesmo...àquela hora não
tinha mais ninguém para ajudar, a menina não parava de gritar por
socorro...desesperada...demos as costas ao barranco e fomos andando rumo à
vila...os gritos da menina ecoavam pelo ar –SOCOOOORROOOOOO MEU PAI TÁ SE
AFOGANDO, ALGUÉM ACODE PELO AMOR DE DEUS!!!
Os meninos tapavam os ouvidos
para não ouvir a garota...caminhávamos como se nada estivesse acontecendo de
grave...como quem vai à feira comprar tutano pra colocar na sopa.
Olhei para Epifânio, cuja
respiração agora começava a ficar ofegante, os olhos marejando como quem sabe o
que deve ser feito, mas não quer fazer, as mãos passando apertada por toda a
extensão da cabeça....o coração em chamas...parou.
E como quem já decidiu por fazer
a coisa certa antes mesmo que aquele neguinho se manifestasse, eu disse:
-Epifânio...
.... ....você não é assim!
Ele nos olhou nos olhos, a boca
aberta soltando o ar, o peito se enchendo e se esvaziando em longas puxadas de
oxigênio, as mãos fechando e abrindo como em posição de socar...as pernas
pareciam estar nervosas...todos estávamos nervosos... ...
...e no exato momento em que ouvimos o grito mais alto da pequena
Ankie....PAAAAAAIIIIII! ....a ordem veio...
GAROTOS.....VAMOS VOAAAAR!!!!!
E saiu correndo como um raio de
volta ao barranco... sem olhar pra trás e ver que todos estávamos com ele...
todos queríamos voar.... voou....como um gavião negro....braços abertos, cabeça
erguida como quem olha para onde quer chegar....e fechando os braços como um
super herói...furou a água...tchuf!!
Todos voamos....éramos seis
pardais em sua cola...todos sentimos a mesma emoção....se Epifânio saltasse
para a cratera de um vulcão em erupção iríamos com ele...era
assim...contagiante...nem pensávamos...era como se confiássemos a vida a ele,
se ele estivesse na coisa tínhamos a certeza que daria certo...
Nadando rápido como sabia nadar,
chegou ao já cansado de lutar “gorila holandês” que ainda se
debatia tomando muita água....Epifânio sabia que se pegasse o gigante ele, no
desespero, iria se atracar ao garoto e ambos se afogariam...esperou por alguns
segundos e, fechando a mão, num momento em que aquele senhor emergiu com água
nos olhos sem poder ver muito, Epifânio deu um soco da lateral com toda a
força...da direita para a esquerda, na ponta do queixo do pai de Ankie...ele
desmaiou...Epifânio tratou de pegá-lo por trás, pelo cangote, deixando a cabeça
do homem pra fora dágua, para que pudesse continuar em condições de respirar,
chegamos para ajudá-lo....um trabalho em equipe...o levamos para a margem...ele
estava desacordado, mas vivo e respirando...tinha engolido muita água, mas não
morreria...todos estávamos cansados daquilo...menos Epifânio...em pé...olhando
o holandês com a filha chorando abraçada ao pescoço do pai que acordara e
retribuía o fraterno abraço...com muita dificuldade o homem levantou-se, nos
olhou, com aqueles olhos azuis da cor do céu... os seis atrás de Epifânio, seis
valentes....Epifânio sabia que aquele homem tinha consciência do que fizera a
ele quando criança e que agora estava em dívida de vida, mas...não era fácil
para um adulto, em frente à filha, se humilhar pedindo perdão a um jovem
adolescente, nem Epifânio queria isso...honradamente, lôro estendeu a mão para
o Seu Ardjan, como que dizendo...-Eu o perdôo!...o
holandês...chorando...estendeu a mão, puxou o menino para si e lhe deu um forte
e calôroso abraço de gratidão, de quem pede perdão...um abraço de amigo...
Relembrando essas histórias, algo
me vem à mente. Epifânio não sabia jogar bola, seu talento não era com os pés.
....
... ...era com o coração.
Por Ricardo Serrão
Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera
coincidência.
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