quinta-feira, 6 de novembro de 2014

No semáforo




No semáforo

No semáforo

Faltavam mais de 100 metros e há muito o semáforo amarelara. Zimpei mas não consegui êxito no intento de atravessar a avenida, pois os adversários motorizados já ameaçavam com vrrruuunnns de cá e de lá, de lá e de cá quase que em sonora sinfonia. Parei o auto, de aros na cara, virei a cabeça para a esquerda e...de repente....lá estava ela...de costas pra mim, morena, mais que morena, morena escura, negra...olha o corpo inerte do companheiro caído na calçada...inerte do meu ponto de observação...o auto...mas certamente ela o via respirar...nada mais que isso...respirar...e o velava, como uma mãe que vela o corpo de um filho caído, abatido por uma bala perdida, perdida de um revolver do governo, sim, um revolver oficial, como sempre acontece, um tiro de soldado PM...mas nada disso...não estava velando um corpo sem vida...estava velando o marido entorpecido até as cuecas, se é que as tinha, por drogas pesada, mas nem tanto, drogas pesadas são para aqueles que as podem adquirir...é...velar o marido é sinal de amor, ou não é? Se fosse eu que lá estivesse ficaria muito feliz se alguém me amasse ao ponto de não deixar as moscas pousarem em mim, ou os cães me lamberem a cara...é amor sim...ou você não gostaria de ter alguém assim se fosse você?


Não conseguia desviar o olhar...os outros passageiros no carro também observavam a cena sem muitos comentários...sem muitos...sem....muitos...tipo...nenhum...a cena não reclamava comentários, não cabia nenhum...olhávamos tão contemplativamente, olhares contemplativos tão profundo, tão mirados, tão sem se desviar que a moça virou rapidamente, e olhou diretamente dentro do carro...não tivemos qualquer reação , fomos pegos em flagrante, constrangidos, envergonhados, mas mais envergonhados ficamos por descobrir que a jovem, que de costas nos parecia só uma menina, agora se nos mostrava uma mulher...de barriga saliente, de quem dará à luz uma vida ....sem sorte...vida sem sorte....vida...quase morte...o tempo estava parado, o semáforo, cruel semáforo, teimava em não nos permitir sair dali, levar nosso vexame para outro lugar, agora era ela quem nos olhava, com um olhar nada fulminante, nada acusador, pelo contrário, um olhar de quem tem um grito no ventre às portas do desespero, louco para ...louco para...tipo...dizer...dá uma moeda aí...a vergonha só aumentava, meti a mão no console do carro e tomando como de assalto todo o dinheiro que tinha, apontei-lhe a nota no momento em que o bendito, agora maldito, ainda bendito...sei lá, esverdeou-se...quanta injustiça daquele tricolor governamental que agora salta do vermelho para o verde sem ao menos pensar que aquela figura, digo, aquelas figuras, mão e filho, almejavam pegar o montante que vos era proposto, os demais veículos, que agora se movimentam não permitiam que ela se aproximasse e os que atrás estavam, buzinavam inquietos, mesmo que de lá pudessem ver o braço estendido pra fora com aquela nota na ponta, mas..aquela mulher, aquela esposa, aquela mãe, aprendera pensar rápido em prol da sobrevivência...joga no chão, joga no chão que eu apanho...pouco importava se um, dois, dez carros passassem por sobre o papel, valoroso papel, o que importava era que naquela noite...naquela noite, não haveria fome, nem para ela, nem para todas as pessoas de seu universo...marido e rebento...abri os dedos...simplesmente abri os dedos e caiu...e me fui, nos fomos...a sensação de dever cumprido tomou conta de mim...estava feliz por ter-lhe dado um momento de alegria...que noite maravilhosa ela teria....quisera eu poder mudar a noite de todas as mulheres que se encontram no mesmo estado, mas não posso...ou posso?...o que sei é que naquela noite haveria pessoas ricas no planeta terra....ela...e eu...eles....e nós...obrigado vida.
Por Ricardo Serrão

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