No semáforo
No semáforo
Faltavam mais de 100 metros e há muito o semáforo
amarelara. Zimpei mas não consegui êxito no intento de atravessar a avenida,
pois os adversários motorizados já ameaçavam com vrrruuunnns de cá e de lá, de lá
e de cá quase que em sonora sinfonia. Parei o auto, de aros na cara, virei a
cabeça para a esquerda e...de repente....lá estava ela...de costas pra mim,
morena, mais que morena, morena escura, negra...olha o corpo inerte do
companheiro caído na calçada...inerte do meu ponto de observação...o auto...mas
certamente ela o via respirar...nada mais que isso...respirar...e o velava,
como uma mãe que vela o corpo de um filho caído, abatido por uma bala perdida,
perdida de um revolver do governo, sim, um revolver oficial, como sempre
acontece, um tiro de soldado PM...mas nada disso...não estava velando um corpo
sem vida...estava velando o marido entorpecido até as cuecas, se é que as
tinha, por drogas pesada, mas nem tanto, drogas pesadas são para aqueles que as
podem adquirir...é...velar o marido é sinal de amor, ou não é? Se fosse eu que
lá estivesse ficaria muito feliz se alguém me amasse ao ponto de não deixar as
moscas pousarem em mim, ou os cães me lamberem a cara...é amor sim...ou você
não gostaria de ter alguém assim se fosse você?
Não conseguia desviar o olhar...os outros
passageiros no carro também observavam a cena sem muitos comentários...sem
muitos...sem....muitos...tipo...nenhum...a cena não reclamava comentários, não
cabia nenhum...olhávamos tão contemplativamente, olhares contemplativos tão
profundo, tão mirados, tão sem se desviar que a moça virou rapidamente, e olhou
diretamente dentro do carro...não tivemos qualquer reação , fomos pegos em
flagrante, constrangidos, envergonhados, mas mais envergonhados ficamos por
descobrir que a jovem, que de costas nos parecia só uma menina, agora se nos
mostrava uma mulher...de barriga saliente, de quem dará à luz uma vida ....sem
sorte...vida sem sorte....vida...quase morte...o tempo estava parado, o
semáforo, cruel semáforo, teimava em não nos permitir sair dali, levar nosso
vexame para outro lugar, agora era ela quem nos olhava, com um olhar nada
fulminante, nada acusador, pelo contrário, um olhar de quem tem um grito no
ventre às portas do desespero, louco para ...louco para...tipo...dizer...dá uma
moeda aí...a vergonha só aumentava, meti a mão no console do carro e tomando
como de assalto todo o dinheiro que tinha, apontei-lhe a nota no momento em que
o bendito, agora maldito, ainda bendito...sei lá, esverdeou-se...quanta
injustiça daquele tricolor governamental que agora salta do vermelho para o
verde sem ao menos pensar que aquela figura, digo, aquelas figuras, mão e
filho, almejavam pegar o montante que vos era proposto, os demais veículos, que
agora se movimentam não permitiam que ela se aproximasse e os que atrás
estavam, buzinavam inquietos, mesmo que de lá pudessem ver o braço estendido
pra fora com aquela nota na ponta, mas..aquela mulher, aquela esposa, aquela
mãe, aprendera pensar rápido em prol da sobrevivência...joga no chão, joga no
chão que eu apanho...pouco importava se um, dois, dez carros passassem por
sobre o papel, valoroso papel, o que importava era que naquela noite...naquela
noite, não haveria fome, nem para ela, nem para todas as pessoas de seu
universo...marido e rebento...abri os dedos...simplesmente abri os dedos e
caiu...e me fui, nos fomos...a sensação de dever cumprido tomou conta de
mim...estava feliz por ter-lhe dado um momento de alegria...que noite
maravilhosa ela teria....quisera eu poder mudar a noite de todas as mulheres
que se encontram no mesmo estado, mas não posso...ou posso?...o que sei é que
naquela noite haveria pessoas ricas no planeta terra....ela...e eu...eles....e
nós...obrigado vida.
Por Ricardo Serrão
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