domingo, 9 de novembro de 2014

Epifânio Augusto em: Anjo Negro

Capítulo VI

Anjo Negro

Na casa de Dona Beth tinha bingo toda semana. Às vezes bingavam um frango de quintal, um pato, um porco, já houve até um bingo de uma vaca leiteira doada por um fazendeiro candidato a cargo público, mas nada de muito valor, pois a comunidade era bem pobre e a cartela era equivalente a um refrigerante pequeno, de garrafa. Depois do bingo rolava aquela festança e a bagaceira ia até o sol raiar. Tantas foram as vezes em que abriam uma porrada e alguém ficava muito machucado, mas não o suficiente para acabar amizades ou pra faltar no bingo da semana seguinte. Chego a pensar que a pancadaria fazia parte da diversão, era uma forma dos homens medirem forças na frente das donzelas de...de....bom...elas tinham entre 12 e 120 anos, rsrsrs, eita donzelada arretada e pra frente!!!! Era nessa hora que o macho se exibia e mostrava pra fêmea que o amor ainda imperava em seu coração, afinal, amar não é só beijar, abraçar, e fazer saliência, amar também é mostrar que é macho e tem força o suficiente para proteger a amada...mulher gosta de se sentir protegida...gosta de saber que seu homem ainda é bom de porrada.
As senhoras se vestiam como quem vai pra festa com aqueles vestidos floridos, feitos por suas próprias mãos ou comprados do marrete mensalista vendedor de redes e fazendas estampadas. Os homens em geral, com a calça filha única, a camisa de botão abertos até a altura do peito, os mais letrados até conseguiam encomendar pelo marreteiro, um panamá, mas a maioria ia mesmo era de palha.
Nós não podíamos ficar para festa depois do bingo, só os adultos, mas sempre dávamos um jeito de ver a festa e o porradal de costume. Epifânio era exímio dançarino e por isso o único convidado a permanecer após a premiação. A mulherada se amarrava em ser sacudida pelos braços do neguinho, e o bicho tinha um rebolado na bunda que deixava a velharada maluca, arqueava levemente o copo pra frente, punha uma das mãos na barriga na altura do umbigo, fazendo um ângulo de 90° graus com o antebraço, o outro braço estendido pra cima, inclinado pra frente, com a palma completamente aberta, saía gingando pelo salão, como um pato que balança o rabo, parecendo deixar a dama com quem dançava abandonada em virtude de sua vaidade de querer ser espiado por todos os presentes, o que às vezes causava certo ciúme aos homens, e voltava em atitude de reverência à parceira como que dizendo “todas me querem, mas por agora, só você me tem”...(ah nego sedutor!).
Saímos dali, deixando o exibido pra trás e fomos à casa de Mário, que ficava a quase uma hora de caminhada pela estrada de barro, num sítio onde morava com seus pais e avós, soubemos que estava dodói. Passava das 10 da noite, nossos pais haviam autorizado passarmos a noite no sítio de Dona Ninita, vó de Mário Alberto, soprava um vento bem forte, estávamos guepardo, sobrancelha, 213, multi-homem e eu.
Guepardo tinha esse apelido porque era mais lento de nós, um dia, enquanto caçávamos queixada pra mantimento das famílias, Epifânio teve que livrá-lo de uma delas, das grandes, enraivecida, que correu atrás de Carlinho e ele, aos prantos não conseguia se distanciar do porco do mato, pois era lento demais correndo, Epifânio fez a mira na 22, enquanto todos gritavam “coooorreeeee que ela vai te pegar” o loro acompanhava os movimentos do suíno silvestre como se não houvesse mais nada nem ninguém por perto....um olho fechado, dedo no gatilho, o coração em consonância com a respiração tranqüila, quase de quem está em sono alfa, calmo, sereno, e...”BAM”...em minutos levávamos a caça pra casa, tiro certeiro, do lado direito da cabeça. Não era diversão...era comida.
Carlinho, envergonhado pelos gritos de medo que soltou, foi se deixando ficar pra trás na trilha, Epifânio diminuiu o passo, todos fizemos o mesmo, e....enquanto ríamos e bagunçávamos com o choro do guri, neguinho parou em frente ao menino assustado, pegou-lhe pelos ombros, e rindo um riso fraternal disse: “Ficou com medo né pivete? fique assim não... também tive medo de que aquele bicho lhe ferisse....também tive medo de errar o tiro e você ser mordido... ter medo é normal e saudável, faz com que tomemos mais cuidado e fiquemos sempre atentos...não chore, a partir de hoje você será nosso guepardo...que anda é claro...mas guepardo... e quem nos ouvir lhe chamando assim pensará que você é o mais rápido de nós” e abraçou Carlinho que agora não mais chorava, mas estufava o peito pelo novo nome...(Epifânio sabia como ser líder...como ser amigo...como ser ...irmão).
Sobrancelha era o que mais odiava seu apelido. Sempre que começávamos falar pra alguém sobre essas alcunhas, ele pedia pra gente parar...”paraí gente, paraí!!!”. Uma vez chegamos na casa dele e o garoto tinha um ferimento em forma de V no meio da testa, unindo de um lado e outro as sobrancelhas.
-Que porra é essa mano?!!! Perguntamos quase em uníssono. Ele começou a falar que tinha caído e que já tava melhor e coisa e tal quando seu tio Abelardo entrou na casa rindo alto e perguntando:
“-Ainda vai tentar mexer com a mulher do bode Paolo? Aprendeu a lição menino?”
Olhávamos pro tio dele... confusos...e todos...ao mesmo tempo...voltamos o olhar pro tarado sexual do Paolo e Epifânio perguntou:
“-Mininu” de Deus, que porra tu tava fazendo com a cabra? Tu tá de novo com essa história de querer comer os bichos? Tu já matou a galinha da vovó, a pata de dona Candinha, até o cachorro pequenez do seu Natanael tu já tentou pegar...caralho garoto que é que tu tem?
-Ai Epifânio eu num sei, num sei o que dá em mim...eu fiquei olhando a cabra andando pra lá e pra cá...naquela posição...parece que tem um capeta no meu couro que fica falando no meuzovido...”olha essa bundinha!” “olha essa rachinha!” a culpa é dele mano, é dele....eu só queria chegar perto e pegar pra saber se era quente como a da novilha...
-E tu já pegou na de uma novilha Carlos Magno? Perguntou incisivo Epifânio...-Tu é doente rapá... doente!!!! O que tu fez com a cabra? fala logo.
-Nada loro, ela nem deixou eu chegar perto e o bode foi mais rápido do que eu...me acertou por trás que fui parar de cara na cerca, bem na furquilha entre dois pregos, quase fiquei cego galera...ó! e mostrava onde os pregos tinham acertados no meio dos olhos...hahaha, Epifânio não demorou nem dois segundos, pra marcar na alma o que aquele bode tinha marcado na testa....”-tu merece essa sobrancelha do capeta” deveria ter ficado era cego dum olho menino endiabrado” cuidado com os chifres dos touros por aí!
Assim nasceu o “sobrancelha do capeta”.
Chegamos ao sítio do Mário Alberto debaixo de muita água, raios e trovões. Os pais do menino não estavam, tinham ido visitar uma prima que tinha parido e levaram o único cavalo do sítio, com o qual puxavam a charrete quando iam à vila em família. Só estavam Dona Etelvina e seu Sabá, avós dele. O menino ardia em febre, de pele branca, estava muito encarnado, tremia, tinha espasmos, convulsões, revirava os olhos e arqueava o corpo no fundo da rede involuntariamente. Os trovões e raios não davam descanso, o garoto gemia, balbuciava palavras desconexas, chamava pela mãe, os avós, já velhinhos não sabiam mais o que fazer, já tinham tentado todos os remédios caseiros que conheciam e a febre não cedia.  
Nós cinco estávamos preocupados, principalmente quando ouvimos Dona Ninita (apelido de D. Etelvina) dizer pro marido: “-Meu velho, vamos perder o menino...ele não vai agüentar até de manhã...vai morrer”. Seu Sabá que não parava de olhar o tempo pela janela virou-se pra nós e disse o que todos tínhamos no coração, mas nos faltava coragem de falar:
“- Rapazes, se não quiserem enterrar o amigo de vocês pela manhã...corram...e chamem Epifânio...ele saberá o que fazer”
Meu Deus, aquele ancião nos colocou uma carga muito pesada, fomos pro passeio da casa, os raios rasgavam os céus como se Deus tirasse retrato da terra, as árvores balançavam com tanta força que ouvíamos o estrondo de algumas caindo no meio da mata, nenhum de nós tinha coragem de enfrentar aquela tempestade, ainda mais na estrada com floresta de um lado e do outro, no escuro...nos olhamos...  ...  ...agora era com a gente...  ... era nosso amigo...   ...nosso amiguinho estava precisando que fôssemos, por apenas algumas horas, os homens mais corajosos que Deus já criou...   ...não falamos muito, sabíamos que nem todos iriam...  ...   ...a tempestade pareceu parar repentinamente... como num sinal divino para que aproveitássemos...  ...eu disse: “-vou eu” os outros quiseram persuadir-me da decisão...mas...já decidira... quando me preparava pra correr a tempestade voltou com intensidade dobrada....as gotas da chuva pareciam querer furar a palha que cobria o barraco... quem sabe Deus quisesse levar o menino pra morar com ele naquela noite? Iria parar qualquer um que quisesse evitar tal ação Dele....   ...  pensei: -Hoje não Deus...hoje não vais levar meu amiguinho....e saí correndo pelo chão de terra encharcado, pesado, difícil até de correr....ouvi os amigos gritarem:
“-VAAAAAAIIIII VALEEEEEENTE!!!! COOOOOORRREEEEEEEEEEEE!”
O vento, as pingos de chuva que mais pareciam pedradas, o barulho no meio da mata das árvores caindo, tudo parecia me castigar, não enxergava nada a um metro de distância à minha frente pela intensidade da chuva...corri...corri...corri como quem corre da morte...corri como quem corre pra vida...e vida de um amigo...mais que amigo...um irmão....Carlos Magno merecia meu sacrifício...na estrada pude notar vários pontos em que havia enxurrada de água no chão, vindas dos terrenos mais altos...nem a cavalo seria fácil chegar a algum lugar por aquele caminho...o medo tentou por vezes me fazer desistir...não parei....não parei até chegar na vila...
Cheguei ao galpão onde a festa começara naquela noite e já não havia festa, as pessoas estavam atônitas com o poder daquela tempestade, ninguém teve coragem sequer de sair dali para suas casas...todos amontoados num canto do salão, espantados...cheguei...molhado...assustado...cansado e fraco...
Os adultos levantaram perguntando o que tinha acontecido...não dei ouvidos...perguntei: Onde está Epifânio?
Antes que qualquer daquelas pessoas dissessem alguma coisa, ouvi atrás de mim, saindo de um canto escuro daquele lugar, uma voz conhecida e que nos aliviava.
“Aqui mano...tô aqui...onde estão os outros...o que aconteceu?”
Contei em detalhes o ocorrido, o cavalo, os pais, os avós, a chuva, a estrada, o menino...a morte...
As senhoras gritaram em histeria, os homens se perguntavam o que poderiam fazer...
Como sempre...Epifânio levou alguns segundos para tomar uma decisão... pegou duas toalhas de plásticos sobre as mesas e enrolou-as ...parecia não haver vento forte, gotas grandes, árvores caindo, estrada escura ou enchente...não pediu ajuda a niguém...era como se o ligassem a um reator...a força vinha, o desejo de ajudar vinha, o instinto de sobrevivência disparava e a coragem...ah a coragem...essa sempre estava lá...
“Olhou-me nos olhos, profundamente e disse: “-BOM TRABALHO VALENTE, VOCÊ FOI UM HERÓI, MAS A NOITE AINDA NÃO ACABOU PRA NÓS...CORRE E VAI CHAMAR O DOUTOR E LEVA ELE PRO POSTO...”
“-Não Epifânio, respondi...hoje não vou te obedecer...vou contigo...você vai precisar de mim...”
“- Tá bom Valente ...então....  VAMOS CORRER”.
Olhou para o grupo de senhoras e deu a ordem...alguém leva o doutor para o posto...agora...
Corremos...corremos como Hermes...voamos sob a tormenta...
Chegamos ao sítio e Epifânio passou direto para o estábulo onde guardavam o cavalo e a charrete, entrei na casa...o menino estava desmaiado...a avó chorava e Seu Sabá, aflito, perguntou pelo loro....Ele veio? –SIM...TÁ LÁ FORA...
Mal acabei de falar e ouvimos o cão gritando lá fora...BOOOORAAAA CORRERRRR saímos e nos deparamos com ele amarrado à charrete, no lugar do cavalo, mandando Dona Ninita e seu Sabá subirem com o menino e se cobrirem com as toalhas de plásticos...quando viu o menino parecendo morto e avermelhado, espantado gritou: Esse camarãozinho vai sobreviver Dona Ninita...eu prometo...
...Era como se nos tornássemos um só quando ele fazia essas loucuras...não tínhamos medo...a força dele nos contagiava...fomos pra chuva e sobrancelha falou: -E nós? O que quer que a gente faça?
“Vão pra trás da charrete e empurrem com toda a força que puderem, levaremos Mário pro posto”...olhou pro céu ... e bradando com fúria mandou um recado....
“HOJE NINGUÉM MORRE NESSA CIDADE...OUVIU? NINGUÉM”
Saímos em disparada, a chuva...o vento...as árvores...o aguaceiro na estrada...a escuridão...os velhos...Epifânio era incrível...quando se tratava de vida ou de justiça...ele não se via...não se notava...via apenas o próximo.
Chegamos no posto, as pessoas da festa estavam todas lá, sem acreditar na cena que viam agora...aquelas crianças...aquele garoto....  ...o médico arrancou o menino dos braços da avó e correu pra dentro do posto...tiraram os velhos...o posto tinha na porta uma janelinha de vidro...Quando entrava, seu Sabá olhou pela janela e o que viu foi cinco garotos exaustos, na chuva, uns escorados na charrete se apoiando, outros de joelho no chão de não se agüentarem em pé...e Epifânio...ainda amarrado ao carro...ereto...com a chuva castigando seu corpo...olhando fixamente para o velho senhor....sem piscar...numa postura de ....Anjo....um Anjo Negro.
Seu Sabá apenas levantou uma das mãos como que dizendo...OBRIGADO...

A chuva parou...a água parou...a morte desistiu...o menino sobreviveu...



Por Ricardo Serrão

Lembram da mera coincidência? Pois é... não esqueçam...continuo pobre.



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