Capítulo 4
A descoberta do amor que dói. E qual o amor que não dói?
Passamos toda a manhã
roubando caju do sítio de seu Neco, comíamos até que a garganta ficasse
travando. Lembro-me bem que naquele dia estavam 213, camarão, eu, e Epifânio
trepados num cajueiro bem alto, pegando cada um lindão, vermelhão assim de dar
água na boca. Precisávamos ficar sempre quietinhos devido aos cachorros do
velho Neco, eram grandes, barulhentos e ferozes, mas nada nos parava quando
queríamos alguma coisa, principalmente quando era coisa alheia, rsrsrs, mas
naquele dia Epifânio estava mais calado que de costume, era o que estava mais
alto na árvore e parecia fitar um ponto muito distante de onde estávamos. Por
mais que tentássemos ver o que ele via não dava porque a posição dele era
privilegiada pela altura.
-Epifânio? Sussurrei
questionando...-Epifânio!! O que tu tá espiando?
Ele estava absorto em
seus pensamentos, completamente compenetrado que nem ligou para meu chamado.
Falei um pouco mais alto:
-Lôôro!!! O que foi
cacete? O que tu tá vendo?
Ele me olhou
calmamente e disse:
-É masturboy...(falou
em baixo tom sem tirar os olhos do alvo, com uma seriedade de quem pressente
que algo de ruim está por acontecer)
Masturboy era um
garoto que morava perto de nossa casa que tinha a pele meio esverdeada,
olheiras muito profundas e escuras, e vivia se queixando que estava cansado,
pouco brincava com a gente porque não tinha muito preparo físico. Não foi à toa
que Epifânio desconfiou que ele se acabava na covardia do cinco contra um no
banheiro, e não eram poucas às vezes durante o dia, pois o cara vivia com
aquela cara de fadiga crônica, por isso o lôro colocou-lhe o apelido de
masturboy.
-O que tem ele
Epifânio?
Tá escondido atrás de
uma moita observando alguma coisa ou alguém...estou esperando para ver se
aparece alguém. Acho que tá aprontando. Vou ver de perto.
E já foi descendo com
aquela agilidade que só ele tinha, em dois lances já estava no solo andando
agachado rumo à estrada de barro.
Vimos quando ele
parou...se levantou...e ficou estático mirando alguma coisa. Continuávamos no
cajueiro sem saber o que de fato acontecia, mas em breve teríamos uma grande
surpresa. Epifânio voltou calado, subiu, não nos olhou, ficou numa posição de
costas pra nós três...
O que era mano? O que
o masturboy tava xeretando? ...calado estava....calado ficou...de costas...aí
falou:
-Tem alguém na casa
do multi-homem... ... ...e... é linda.
-Quem será gente?
Perguntei. Se é linda deve ser visita de outra família, porque na família dele
só tem gente feia, lembram da Soninha, a zoiudinha? Outro dia sonhei que tava
pegando aquela guria numa festa...quando ia beijá-la tive acesso de tosse no
sonho...meu Deus, acordei quase tuberculoso de tanto que tossia, acho que foi
meu subconsciente se defendendo daquele beijo da morte, suava em bica.
-Não sei quem é,
mas...é linda...e vai ser minha...ah vai!
Ou Epifânio fora
possuído por um espírito imundo de pretensão descabida, ou de presunção
repentina ou de fato falava sério, simples assim. Mas não imaginávamos que
aquele nego beiçola do cabelo loiro, feio, irresponsável, inconsequente, que
estava sempre sem camisa mostrando um corpo desprovido de pelos e a quem pouco
se dava crédito, poderia se dar bem com qualquer exemplar do sexo feminino.
Fato é que à noite estávamos todos reunidos falando sobre o assunto...quem era
a garota na casa do multi-homem? Epifânio não estava conosco e resolvemos fazer
uma visita ao amigo que recebia a ilustre visitante. Chegamos todos juntos,
nessa hora a turma estava toda reunida, guepardo, sobrancelha, 213,camarão e eu,
só Epifânio não estava. Ela não era linda, o lôro foi injusto com a menina, ela
era...perfeita...chamava Dalila, tinha olhos graúdos meio caídos, boca carnuda
(parece até que só apareciam dessas bocudinhas nas nossas vidinhas de
adolescentes), os dentes bem branquinhos e havia uma falha nos dentes que lhe
davam um charme especial, magrinha sem ser seca, cabelos compridos, lisos,
tinha uma pintinha no rosto, um sinal de belezura. Manel Hilário nos apresentou
como prima dele, mas na realidade era uma prima tão tão distante que me faz
pensar no reino do Shreck.
Ela pouco falava,
pouco sorria, por mais que tentássemos parecer agradáveis parecia que não
tínhamos êxito em nada do que falávamos ou fazíamos para agradá-la. A varanda
da casa do multi-homem parecia mais um anfiteatro rural onde uma atração
principal se punha ao centro e os espectadores esparramavam-se ao seu
redor...algo...quase circense.
Passava das oito
horas quando vimos um vulto na estradinha, caminhando em nossa direção, parecia
mais uma camisa branca flutuando...era Epifânio, diferente, tava vestido, de
camisa, calça, sandália percata (alpargatas), e pasmem, gravatinha borboleta,
kkkk inacreditável, o lôro tava realmente disposto a conquistar a guria...foi
se aproximando, aproximando, numa altivez, num charme que só ele....não
tem...quando chegou Manel levantou orgulhoso e foi apresentar a prima ao amigo,
era uma cena quase tão solene quanto a posse do Presidente do Senado.
Disse o multi-homem:
-Epifânio, essa é
Dalila minha prima lá de Goiás, veio visitar a gente.
Epifânio não tirava o
olhar do olhar dela, um olhar de sedutor, tipo Dom Juan, a menina parecia
enfeitiçada por aquele olhar, pois não conseguia desviar os olhos daquele belo
exemplar dos zulus....belo?...pulemos essa parte... ele estava em pé, de costas
pra nós, com a mão estendida rumo à garota, que se levantara também para
cumprimentar aquele guri completamente diferente dos que já vira até aquele
momento naquele lugar esquecido de Deus...no exato momento em que ela lhe tocou
a mão ...Epifânio soltou um peido...putamerda Epifânio, o que é isso? Na nossa
cara?....ele ficou tão sem saber o que fazer que abriu os braços num abraço
envergonhado e já foi pedindo desculpas...FUI EU, FUI EU, DESCULPA, DESCULPA,
FOI O CAJU, FOI O CAJU.... tadinhos dos cajus, levaram a culpa dos flatos
fedorentos...o filhote de cruz credo ainda virou pra nós e pediu com a cara
mais sem vergonha querendo chorar: -GENTE AJUDA AÍ, CHEIRA TODO MUNDO JUNTO PRA
ACABAR LOGO ESSA CATINGA...parecia que o moleque tinha comido um casal de mucura
assada na folha da bananeira e banhada no molho da castanha, e que a castanha
também estava passada já....a menina ficou mais constrangida que ele e sem
saber o que fazer...e mais verde que o masturboy coitada...não devia estar
acostumada com esse tipo de boas vindas...lá pelos Goiás não deve ser
assim...ou é? Sei lá!!!
Epifânio Augusto
Cortez de Sena, seu criado, não despertou o amor em Dalila, também não
despertou o nojo, mas despertou uma enorme curiosidade na garota pra saber o
que ele tinha na cabeça quando se vestiu daquele jeito como quem vai fazer
exame de fezes e não quer que ninguém saiba que tá levando um potinho de cocô
no saquinho dentro bolsa. Depois que o vexame diminuiu ficamos conversando até
tarde e todos foram pra casa, menos Epifânio, cuja mãe não se importava muito
se ele chegasse tarde em casa, pois sabia que ele sabia se cuidar.
O tempo que Dalila
esteve na casa do primo Manel foi na companhia de Epifânio, queria encontrar um
era só saber onde o outro estava. Foram dias de calmaria no cajueiro do seu
Neco, nas gazetas da escola, e nos lugares por onde andávamos aprontando na
companhia dele. Esse tempo serviu para nos mostrar que sem a companhia dele
éramos apenas garotos comuns, mas quando ele estava por perto...éramos heróis
nacionais mudialmente conhecidos na nossa cidade...todos conheciam nossa turma
e respeitavam, até mesmo os garotos mais velhos não tiravam onda com a gente.
No dia que Dalila
iria voltar pra cidade onde morava, Epifânio sumiu, a menina pediu que
procurássemos por ele, fomos na casa dele, na escola, no igarapé grande, no
fumódromo, onde às vezes íamos jogar bola com os maconheiros da área, nos
sítios onde costumávamos ajudar na colheita do pés de fruta...colhíamos pra nós
é claro...mas nada de Epifânio...estava triste em algum lugar, afinal, o melhor
que já lhe acontecera estava partindo da cidade e partindo seu coração. Não sei
se ela o namorou naqueles dias, mas sei que ele não só a namorou como noivou e
casou com ela em seus mais prazerosos pensamentos. Neguin tava chorando em
algum lugar! O ônibus que a levaria pra cidade pra pegar o avião já se
preparava pra partir...a família do multi-homem (que chorava feito menina)
estava toda lá pra se despedir...nós também...abraçamos Dalila, que chorava
muito, e fazia com que nossos coraçõezinhos adolescentes sofressem também. Entrou
no ônibus...o motor já estava ligado...o motorista fechou a porta e a menina
não parava de procurar Epifânio, com os olhos inchados de tanto chorar...olhava
pra todos os lados pela janela do busão sem nenhum sinal dele...ela sentou,
baixou a cabeça entre as pernas e sofreu..sofreu como quem sofre com a
experiência de morte...o ônibus se moveu...saiu da inércia e...de repente...ouvimos
um alvoroço...uma gritaria que de baixinha se agigantava...um frisson que
tomava conta da plataforma...olhamos e vimos Epifânio chegando a galope num
cavalo no mínimo roubado de algum sítio da redondeza...bem ao estilo Epifânio,
sem camisa, só de short surrado, descalço, braços para o alto gritando: “-PÁRA,
PÁRA, PÁRA OU ATROPELO ESSE ÔNIBUS”...o motorista num misto de surpresa e temor
freou bruscamente o intermunicipal. A galera vibrou com a chegada dele, ele
sabia como fazer uma grande entrada, fosse com vespas, poraquês, ou cavalos ele
sabia como ser o astro do momento, e fazia isso com uma naturalidade e
ingenuidade de criança. Epifânio apeou do cavalo, e sobre o aplauso da galera
parou à porta do coletivo sem nada dizer....o motorista olhando fixamente para
ele e ele para o motorista numa batalha interplanetária mental...o lôro não
desgrudou o olhar do motorista que sem ter muito o que fazer e vendo a euforia
de todos na plataforma, muito a contragosto, abriu a porta do veículo. Antes de
subir, ele olhou-nos tão emblematicamente que nada precisou dizer para nos
lembrar das palavras que proferiu no primeiro dia de contato com sua deusa:
“-Não sei quem é,
mas...é linda...e vai ser minha...ah vai!”.
Subiu imponente como
um Hércules subindo o Monte Olimpo...de fora podíamos ver o semblante de
Dalila, agora em pé, olhando o “amigo” parado na entrada do corredor de
poltronas...o motorista quis falar alguma coisa, mas se deparou com os olhares
da gangue...GUEPARDO ANDANTE, SOBRANCELHA DO CAPETA, CAMARÃO, CODINOME 213, MULTI-HOMEM...e
eu, na porta do ônibus lhe fitando com cara de poucos amigos como que lhe
dizendo: Ele é nosso amigo... ... ...vai encarar?...não encarou, ficou
quieto...
Epifânio abriu seus braços e Dalila se
aninhou com os braços encolhidos, aos prantos, como querendo se sentir segura
naquele abraço juvenil, agora tão adulto e tão protetor...ele que não era tão
mais alto que ela, levantou o queixo e apenas lhe abraçava apertada e
demoradamente...era como se ela quisesse dizer...”vem”....e ele...”fica”, mas
éramos todos muito crianças para assumir tais responsabilidades...não
conseguíamos nem passar direto no colégio sem ficar de recuperação. Ele olhando
nos olhos dela, se vendo no olhar dela, disse: “-não importa onde você
esteja... ... ...com quem você esteja... ...você mora dentro de mim...sou teu!”
e ela: “-não importa quanto tempo... ... ... quantos abraços... ...você mora
dentro de mim...sou tua!” e chorando... permitiram que seus lábios se
aproximassem cada vez mais e...se tocaram...suavemente...ambos puxando
profundamente a respiração sentindo o cheiro um do outro como num enigma que só
eles sabiam o significado...ele afagava seus cabelos longos e a puxava
firmemente como querendo se fundir com ela...a plataforma toda em silêncio...os
passageiros dentro do ônibus em silêncio...a hora era de partir...ele pegou a
mão dela...colocou na boca....e...passou uns bons segundos nesse gesto que nos
parecia um beijo, mas não era....ele a marcara com os dentes...ela não reclamou
de dor...sabia o que ele estava fazendo, aceitava passivamente ter a marca
dele...ele levantou a cabeça e disse...”-quando você se sentir sozinha, olhe
sua mão, me veja...me sinta... seja eu...serei você...me espera no amanhã...me
espera no futuro...vou procurar você Vida!” (era a primeira vez que o ouvíamos
chamá-la de algum nome...Vida...lindo)...”-sei que vai, ela disse...vou esperar
o tempo que precisar”...e aos prantos ela o deixou ir...e se separaram...ele
desceu do coletivo candidamente, olhou-nos com autoridade, virou-se para o
motorista e... ... ...anuiu com a cabeça como que autorizando sua partida.
Ninguém ousava pronunciar qualquer palavra...todos tinham noção da dor e do
sofrimento que estavam sendo vividos ali...o ônibus se foi...Dalila se
foi...Vida se foi...mas a esperança do reencontro permaneceu...e terá seu
desassossego a seu tempo.
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