terça-feira, 4 de novembro de 2014

Epifânio Augusto em: A descoberta do amor que dói. E qual o amor que não dói?


Capítulo 4


A descoberta do amor que dói. E qual o amor que não dói?


Passamos toda a manhã roubando caju do sítio de seu Neco, comíamos até que a garganta ficasse travando. Lembro-me bem que naquele dia estavam 213, camarão, eu, e Epifânio trepados num cajueiro bem alto, pegando cada um lindão, vermelhão assim de dar água na boca. Precisávamos ficar sempre quietinhos devido aos cachorros do velho Neco, eram grandes, barulhentos e ferozes, mas nada nos parava quando queríamos alguma coisa, principalmente quando era coisa alheia, rsrsrs, mas naquele dia Epifânio estava mais calado que de costume, era o que estava mais alto na árvore e parecia fitar um ponto muito distante de onde estávamos. Por mais que tentássemos ver o que ele via não dava porque a posição dele era privilegiada pela altura.

-Epifânio? Sussurrei questionando...-Epifânio!! O que tu tá espiando?

Ele estava absorto em seus pensamentos, completamente compenetrado que nem ligou para meu chamado. Falei um pouco mais alto:

-Lôôro!!! O que foi cacete? O que tu tá vendo?

Ele me olhou calmamente e disse:

-É masturboy...(falou em baixo tom sem tirar os olhos do alvo, com uma seriedade de quem pressente que algo de ruim está por acontecer)

Masturboy era um garoto que morava perto de nossa casa que tinha a pele meio esverdeada, olheiras muito profundas e escuras, e vivia se queixando que estava cansado, pouco brincava com a gente porque não tinha muito preparo físico. Não foi à toa que Epifânio desconfiou que ele se acabava na covardia do cinco contra um no banheiro, e não eram poucas às vezes durante o dia, pois o cara vivia com aquela cara de fadiga crônica, por isso o lôro colocou-lhe o apelido de masturboy.

-O que tem ele Epifânio?

Tá escondido atrás de uma moita observando alguma coisa ou alguém...estou esperando para ver se aparece alguém. Acho que tá aprontando. Vou ver de perto.

E já foi descendo com aquela agilidade que só ele tinha, em dois lances já estava no solo andando agachado rumo à estrada de barro.

Vimos quando ele parou...se levantou...e ficou estático mirando alguma coisa. Continuávamos no cajueiro sem saber o que de fato acontecia, mas em breve teríamos uma grande surpresa. Epifânio voltou calado, subiu, não nos olhou, ficou numa posição de costas pra nós três...

O que era mano? O que o masturboy tava xeretando? ...calado estava....calado ficou...de costas...aí falou:

-Tem alguém na casa do multi-homem... ... ...e... é linda.

-Quem será gente? Perguntei. Se é linda deve ser visita de outra família, porque na família dele só tem gente feia, lembram da Soninha, a zoiudinha? Outro dia sonhei que tava pegando aquela guria numa festa...quando ia beijá-la tive acesso de tosse no sonho...meu Deus, acordei quase tuberculoso de tanto que tossia, acho que foi meu subconsciente se defendendo daquele beijo da morte, suava em bica.

-Não sei quem é, mas...é linda...e vai ser minha...ah vai!

Ou Epifânio fora possuído por um espírito imundo de pretensão descabida, ou de presunção repentina ou de fato falava sério, simples assim. Mas não imaginávamos que aquele nego beiçola do cabelo loiro, feio, irresponsável, inconsequente, que estava sempre sem camisa mostrando um corpo desprovido de pelos e a quem pouco se dava crédito, poderia se dar bem com qualquer exemplar do sexo feminino. Fato é que à noite estávamos todos reunidos falando sobre o assunto...quem era a garota na casa do multi-homem? Epifânio não estava conosco e resolvemos fazer uma visita ao amigo que recebia a ilustre visitante. Chegamos todos juntos, nessa hora a turma estava toda reunida, guepardo, sobrancelha, 213,camarão e eu, só Epifânio não estava. Ela não era linda, o lôro foi injusto com a menina, ela era...perfeita...chamava Dalila, tinha olhos graúdos meio caídos, boca carnuda (parece até que só apareciam dessas bocudinhas nas nossas vidinhas de adolescentes), os dentes bem branquinhos e havia uma falha nos dentes que lhe davam um charme especial, magrinha sem ser seca, cabelos compridos, lisos, tinha uma pintinha no rosto, um sinal de belezura. Manel Hilário nos apresentou como prima dele, mas na realidade era uma prima tão tão distante que me faz pensar no reino do Shreck.

Ela pouco falava, pouco sorria, por mais que tentássemos parecer agradáveis parecia que não tínhamos êxito em nada do que falávamos ou fazíamos para agradá-la. A varanda da casa do multi-homem parecia mais um anfiteatro rural onde uma atração principal se punha ao centro e os espectadores esparramavam-se ao seu redor...algo...quase circense.

Passava das oito horas quando vimos um vulto na estradinha, caminhando em nossa direção, parecia mais uma camisa branca flutuando...era Epifânio, diferente, tava vestido, de camisa, calça, sandália percata (alpargatas), e pasmem, gravatinha borboleta, kkkk inacreditável, o lôro tava realmente disposto a conquistar a guria...foi se aproximando, aproximando, numa altivez, num charme que só ele....não tem...quando chegou Manel levantou orgulhoso e foi apresentar a prima ao amigo, era uma cena quase tão solene quanto a posse do Presidente do Senado.

Disse o multi-homem:

-Epifânio, essa é Dalila minha prima lá de Goiás, veio visitar a gente.

Epifânio não tirava o olhar do olhar dela, um olhar de sedutor, tipo Dom Juan, a menina parecia enfeitiçada por aquele olhar, pois não conseguia desviar os olhos daquele belo exemplar dos zulus....belo?...pulemos essa parte... ele estava em pé, de costas pra nós, com a mão estendida rumo à garota, que se levantara também para cumprimentar aquele guri completamente diferente dos que já vira até aquele momento naquele lugar esquecido de Deus...no exato momento em que ela lhe tocou a mão ...Epifânio soltou um peido...putamerda Epifânio, o que é isso? Na nossa cara?....ele ficou tão sem saber o que fazer que abriu os braços num abraço envergonhado e já foi pedindo desculpas...FUI EU, FUI EU, DESCULPA, DESCULPA, FOI O CAJU, FOI O CAJU.... tadinhos dos cajus, levaram a culpa dos flatos fedorentos...o filhote de cruz credo ainda virou pra nós e pediu com a cara mais sem vergonha querendo chorar: -GENTE AJUDA AÍ, CHEIRA TODO MUNDO JUNTO PRA ACABAR LOGO ESSA CATINGA...parecia que o moleque tinha comido um casal de mucura assada na folha da bananeira e banhada no molho da castanha, e que a castanha também estava passada já....a menina ficou mais constrangida que ele e sem saber o que fazer...e mais verde que o masturboy coitada...não devia estar acostumada com esse tipo de boas vindas...lá pelos Goiás não deve ser assim...ou é? Sei lá!!!

Epifânio Augusto Cortez de Sena, seu criado, não despertou o amor em Dalila, também não despertou o nojo, mas despertou uma enorme curiosidade na garota pra saber o que ele tinha na cabeça quando se vestiu daquele jeito como quem vai fazer exame de fezes e não quer que ninguém saiba que tá levando um potinho de cocô no saquinho dentro bolsa. Depois que o vexame diminuiu ficamos conversando até tarde e todos foram pra casa, menos Epifânio, cuja mãe não se importava muito se ele chegasse tarde em casa, pois sabia que ele sabia se cuidar.

O tempo que Dalila esteve na casa do primo Manel foi na companhia de Epifânio, queria encontrar um era só saber onde o outro estava. Foram dias de calmaria no cajueiro do seu Neco, nas gazetas da escola, e nos lugares por onde andávamos aprontando na companhia dele. Esse tempo serviu para nos mostrar que sem a companhia dele éramos apenas garotos comuns, mas quando ele estava por perto...éramos heróis nacionais mudialmente conhecidos na nossa cidade...todos conheciam nossa turma e respeitavam, até mesmo os garotos mais velhos não tiravam onda com a gente.

No dia que Dalila iria voltar pra cidade onde morava, Epifânio sumiu, a menina pediu que procurássemos por ele, fomos na casa dele, na escola, no igarapé grande, no fumódromo, onde às vezes íamos jogar bola com os maconheiros da área, nos sítios onde costumávamos ajudar na colheita do pés de fruta...colhíamos pra nós é claro...mas nada de Epifânio...estava triste em algum lugar, afinal, o melhor que já lhe acontecera estava partindo da cidade e partindo seu coração. Não sei se ela o namorou naqueles dias, mas sei que ele não só a namorou como noivou e casou com ela em seus mais prazerosos pensamentos. Neguin tava chorando em algum lugar! O ônibus que a levaria pra cidade pra pegar o avião já se preparava pra partir...a família do multi-homem (que chorava feito menina) estava toda lá pra se despedir...nós também...abraçamos Dalila, que chorava muito, e fazia com que nossos coraçõezinhos adolescentes sofressem também. Entrou no ônibus...o motor já estava ligado...o motorista fechou a porta e a menina não parava de procurar Epifânio, com os olhos inchados de tanto chorar...olhava pra todos os lados pela janela do busão sem nenhum sinal dele...ela sentou, baixou a cabeça entre as pernas e sofreu..sofreu como quem sofre com a experiência de morte...o ônibus se moveu...saiu da inércia e...de repente...ouvimos um alvoroço...uma gritaria que de baixinha se agigantava...um frisson que tomava conta da plataforma...olhamos e vimos Epifânio chegando a galope num cavalo no mínimo roubado de algum sítio da redondeza...bem ao estilo Epifânio, sem camisa, só de short surrado, descalço, braços para o alto gritando: “-PÁRA, PÁRA, PÁRA OU ATROPELO ESSE ÔNIBUS”...o motorista num misto de surpresa e temor freou bruscamente o intermunicipal. A galera vibrou com a chegada dele, ele sabia como fazer uma grande entrada, fosse com vespas, poraquês, ou cavalos ele sabia como ser o astro do momento, e fazia isso com uma naturalidade e ingenuidade de criança. Epifânio apeou do cavalo, e sobre o aplauso da galera parou à porta do coletivo sem nada dizer....o motorista olhando fixamente para ele e ele para o motorista numa batalha interplanetária mental...o lôro não desgrudou o olhar do motorista que sem ter muito o que fazer e vendo a euforia de todos na plataforma, muito a contragosto, abriu a porta do veículo. Antes de subir, ele olhou-nos tão emblematicamente que nada precisou dizer para nos lembrar das palavras que proferiu no primeiro dia de contato com sua deusa:

“-Não sei quem é, mas...é linda...e vai ser minha...ah vai!”.

Subiu imponente como um Hércules subindo o Monte Olimpo...de fora podíamos ver o semblante de Dalila, agora em pé, olhando o “amigo” parado na entrada do corredor de poltronas...o motorista quis falar alguma coisa, mas se deparou com os olhares da gangue...GUEPARDO ANDANTE, SOBRANCELHA DO CAPETA, CAMARÃO, CODINOME 213, MULTI-HOMEM...e eu, na porta do ônibus lhe fitando com cara de poucos amigos como que lhe dizendo: Ele é nosso amigo... ... ...vai encarar?...não encarou, ficou quieto...

Epifânio abriu seus braços e Dalila se aninhou com os braços encolhidos, aos prantos, como querendo se sentir segura naquele abraço juvenil, agora tão adulto e tão protetor...ele que não era tão mais alto que ela, levantou o queixo e apenas lhe abraçava apertada e demoradamente...era como se ela quisesse dizer...”vem”....e ele...”fica”, mas éramos todos muito crianças para assumir tais responsabilidades...não conseguíamos nem passar direto no colégio sem ficar de recuperação. Ele olhando nos olhos dela, se vendo no olhar dela, disse: “-não importa onde você esteja... ... ...com quem você esteja... ...você mora dentro de mim...sou teu!” e ela: “-não importa quanto tempo... ... ... quantos abraços... ...você mora dentro de mim...sou tua!” e chorando... permitiram que seus lábios se aproximassem cada vez mais e...se tocaram...suavemente...ambos puxando profundamente a respiração sentindo o cheiro um do outro como num enigma que só eles sabiam o significado...ele afagava seus cabelos longos e a puxava firmemente como querendo se fundir com ela...a plataforma toda em silêncio...os passageiros dentro do ônibus em silêncio...a hora era de partir...ele pegou a mão dela...colocou na boca....e...passou uns bons segundos nesse gesto que nos parecia um beijo, mas não era....ele a marcara com os dentes...ela não reclamou de dor...sabia o que ele estava fazendo, aceitava passivamente ter a marca dele...ele levantou a cabeça e disse...”-quando você se sentir sozinha, olhe sua mão, me veja...me sinta... seja eu...serei você...me espera no amanhã...me espera no futuro...vou procurar você Vida!” (era a primeira vez que o ouvíamos chamá-la de algum nome...Vida...lindo)...”-sei que vai, ela disse...vou esperar o tempo que precisar”...e aos prantos ela o deixou ir...e se separaram...ele desceu do coletivo candidamente, olhou-nos com autoridade, virou-se para o motorista e... ... ...anuiu com a cabeça como que autorizando sua partida. Ninguém ousava pronunciar qualquer palavra...todos tinham noção da dor e do sofrimento que estavam sendo vividos ali...o ônibus se foi...Dalila se foi...Vida se foi...mas a esperança do reencontro permaneceu...e terá seu desassossego a seu tempo.

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