sexta-feira, 26 de março de 2021

Deusa Arte.

MÚSICA
Já escrevi sobre a presença da arte nas nossas vidas.
“A arte é assim, alguns gostam, outros nem tanto, outros são distantes, mas todos, em algum momento, são chamados para fazer arte.
Há aqueles que dizem sim para a arte e os que dizem...depois. Mas todos, em algum momento, pensaram em ser artista".
Sabe dessas histórias que nos parece existir somente no cinema?
Vou contar uma assim...surreal.
Tem coisas que a vida nos faz que parecem realmente ser coisa do destino. Umas acabam muito bem, outras nem tanto, mas vejam essa.
Ela de uma tribo nativa, rosto arredondado, corpo cheinho, nariz fora do padrão de arrebitamento, olhos amendoados (meio nipônicos também), cabelos lisos e negros tipo noite sem luar, saiu para a capital para estudar. Morou com uma família que lhe foi boníssima. Se formou no ginásio, depois fez academia, graduou, pós-gradual, especializou-se em...vejam só...em música e a especialidade em percussão, talvez sentisse no coração, quando deitava à noite, o rufar dos tambores na tribo, que faziam a marcação nos para os passos das danças quando a comunidade se reunia para celebrar a natureza, celebrar a vida. Essa é uma conexão que só sente quem tem nas veias o sangue nativo, seja de que etnia for.
Ele, autodidata no violão e guitarra, compositor, cantor e fez da música a sua profissão. Mas também era especialista.
Um dia em que ela participava de um congresso em outro país, após as palestras do dia, foi com a turma tomar alguma coisa num pub. Ali ele se preparava pra tocar, mas seu percussionista ainda não chegara. Incomodados com a demora no início da música ao vivo, ela e os amigos questionaram ao garçon, que lhes informou:- O parceiro do músico não veio e é ele quem toca a percussão.
Imediatamente ela levanta, se dirige ao cantor, magricelo feito pena, soberbo por ser dono de um talento invejável com as cordas, mas ainda assim, metido demais, e lhe propõe tocar com ele em troca da conta. Ele aceitou, por pura necessidade e por apenas ela ter se prontificado a fazer música com ele, mesmo que ele achasse que ela nada poderia fazer além de bater basicamente um tambor, e sobre a conta, não se preocupou, pois sabia que o dono do estabelecimento é quem ficaria com a responsa.
Ela arrumou os instrumentos que havia no local, carrilhão, agogôs, triângulo, bongôs, castanhola, caxixi e chocalho, xaquerê, pandeiro, vara, atabaque, etc... num layout que ele jamais vira em toda sua carreira, se posicionou sobre um cajón, olhou com segurança pra ele que a observava desde sempre, que apenas ligou a guitarra e soltou o primeiro acorde no Campoy.
Durante as duas horas em que tocaram juntos, ambos não esconderam a admiração um pelo outro, mas não era uma admiração qualquer como um flerte, um crush, um date, mas uma sublime admiração pelo que o outro fazia com seus instrumentos e talento. Estavam em transe tocando e cantando para alguém que não era apenas o público presente, estava ali, presente, mas não visivelmente, apenas sendo sentido por eles e recebendo a oferta de som, um lindo som.
Quando a derradeira canção foi iniciada já não havia barreiras entre os dois, nenhuma, mesmo que apenas aquela da falta dele por não se conhecerem há duas horas. Ela em outro instrumento, faz o som daquele, mas logo assenta-se ao cajón novamente e fica num plano mais baixo que o dele tocando agora a guitarra e o admirando, pelo menos o observando com os olhos brilhando.
De repente, enquanto ele interage com a plateia em suas mãos, fazendo com que todos e cada um cante com ele aquela tão linda canção, ela faz um movimento de sair do cajón, e se ajoelhar sobre um dos joelhos, sem parar de tocar, ainda a mirar-lhe a guitarra, os movimentos, as palavras, o conjunto da obra, quando o público silencia enquanto a música continua e ele, voltando-se pra ela, afasta-se do microfone a lhe diz:
-Você está estragando tudo, está me constrangendo, levante-se, não toco tão bem assim para que se ajoelhe pra mim.
Olhando pra ele com certa tristeza, mas também com carinho por reconhecer a ignorância dele quanto ao seu ato, lhe responde:
-Não me ajoelho pra você...minha bela música reverencia sua bela música. Somos falhos e impuros, mas a música é pura em todos os sentidos e ela se comunica entre si por todo o universo. Você não a conquista, ela se entrega a você.
Ao ouvir isto percebeu o erro que cometeu o jovem músico. Sem saber muito o que fazer, querendo terminar o show da melhor maneira, pensou e decidiu...também ajoelhou-se sobre um dos joelhos, ainda tocando a guitarra, só que não se limitou a olhar-lhe apenas o conjunto da obra, mas também abaixou a cabeça num gesto de maior reverência ainda.
A plateia nada ouviu daquele diálogo, mas sucumbiu à cena e em uníssono e num só ato levantou-se bradando vivas e aplaudindo-os de pé por longos 7,36 minutos, tempo igual ao em que o final da música fora repetido enquanto os aplausos ecoavam pelo pequeno pub, que agora não mais era um simples pub, mas um templo à deusa música.
Querem saber o que aconteceu com o casal de músicos?
Digam vocês e escreverei.
Por Ricardo Serrão.

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