Capítulo XIV
Diferentes, mas iguais.
A luta de nosso amigo continuava, e as pessoas já não
acreditavam que ele conseguiria sair daquele estado vegetativo. O discurso dos
médicos que o acompanhavam esfriava mais a cada dia. Não falavam mais em
retorno do jovem do coma, tampouco faziam qualquer menção à esperança de uma
vida normal, caso voltasse. O fato é que entre nós não havia desesperança, só
havia expectativa da hora em que ele acordaria e sairíamos juntos para fazer
nossas artes pela cidade e aporrinhar alguns adultos que não gostavam muito de
nós. 213 chegou a sugerir que retirássemos o garoto do hospital na calada da
noite e o levássemos até a cachoeira do profano e déssemos um mergulho com ele
para ver se acordava dessa situação, afinal, aquelas águas conheciam muito bem
aquele corpo, vestido ou despido nada era novo para aquela cachoeira em
Epifânio.
Um dos seguranças do hospital ficou nosso amigo de tanto que
conversávamos com ele, multi-homem o apelidou de ”Cara de aborto” (dá pra
imaginar a beleza dele não é?), andava com uma arma no coldre, não sei pra quê,
quem iria querer assaltar um hospital?
Não parávamos de lembrar das histórias vividas com Epifânio,
como no dia em que chegamos à casa de MH, chamamos e ninguém apareceu. Rodeamos
a casa e fomos por trás, estranhando o fato da porta dos fundos estar aberta e
ninguém aparecer. Estávamos apenas Guepardo, eu e Lôro...entramos em silêncio
como que desconfiando que havia algo errado na casa e qual não foi nossa
surpresa ao encontrarmos MH abraçado no quarto da mãe com André Giovanini, um
garoto da escola que todos sabiam gostar de meninos, e de quem muitos tiravam
sarro por essa preferência sexual do guri, menos Epifânio. Nós mesmos não
gostávamos de nos enturmar com ele, nem de falar com aquele afeminado, mas
falávamos por respeito, e agora, víamos MH...fazendo...sabe-se lá o quê com ele
no quarto da mãe, abraçados, sozinhos....será? André saiu correndo quando nos
viu e Manelzinho começou a gaguejar, tentando se explicar, que não era nada
daquilo que estávamos pensando e coisa tal...e...nada....guepardo foi logo
aloprando: “Viado, tu é viado Manel, sempre desconfiei de ti, viadinho da
porra!!! Não vai mais fazer parte dos valentes, não merece andar mais com a
gente seu arrombado de merda!” . Carlos Magno estava de fato com raiva e com
nojo daquele que até minutos atrás era amigo de todos...eu confesso, naquele
momento fiquei muito decepcionado com MH, não imaginava que ele gostava de
homens também...Carlinho não parava de xingá-lo, prometendo até porrada nele,
de repente saiu correndo aos berros de que iria contar aos outros da turma e
que logo MH seria expulso por todos os Valente. Manelzinho sentou aos prantos
no colchão velho dos pais dele, as janelas estavam fechadas, o quarto estava
meio escuro, a luz que entrava era das brechas da parede, apesar de ser pouco
mais de meio dia, hora em que geralmente sua mãe levava o almoço do marido no
serviço. Apesar de toda a situação, Carlos Magno foi cruel com ele...muito
cruel com o amiguinho...Epifânio nada disse, mas não ficou nada feliz, a cara
era de muita decepção...em silêncio ficamos ouvindo o choro de MH...choro de
vergonha pela descoberta e de tristeza pela expulsão dos valentes, sabia que
não poderia mais andar conosco, que teria que responder quando perguntassem
porque não era mais da nossa turma...Epifânio se aproximou da cama...sentou ao
lado do guri que continuou de cabeça baixa chorando...olhou em minha direção e
na da janela...entendi...abri o janelão e a claridade do sol adentrou no
recinto...perguntou a MH sem se dirigir diretamente a ele: “É isso que você
quer Manel? Se agarrar com garotos?”...quando Manel levantou a cabeça e ia
responder Epifânio continuou sua fala: “Manel, a resposta a essa pergunta não é
importante pra mim, mas sim pra você...a decisão que tomar a esse respeito hoje
terá conseqüências para o resto de sua vida...mas de SUA vida...lembre
disso...de SUA vida. Quanto a mim...bom...somos amigos...e nada vai mudar isso,
e se alguém me apelidar por sua causa não terá problema, ainda assim seremos
amigos, pois sei que jamais faltará respeito entre nós parceiro, e quanto ao
Carlinho, resolveremos isso quando estivermos todos juntos...agora vamos
encontrá-los”. MH tentou dizer que não queria ir, que estava com vergonha dos
outros, mas Epifânio não permitiu que desistisse de encarar a turma...”Se não
vier, não terá mais o respeito dos outros...precisa mostrar que continua sendo
o mesmo, apesar da diferença, você é igual a nós”. Chegamos ao buritizal onde
nos encontraríamos para a arte do dia e lá estavam Guepardo (Carlos Magno), Camarão
(Mário Alberto) e Sobrancelha do capeta (Paolo), todos de cara
amarrada...Carlinho já espalhara o ocorrido.
A chegada foi em silêncio, os demais foram logo perguntando o
por quê de MH está ali com a gente. MH nada falou, Guepardo recomeçou os
xingamentos de bicha, viado, boiola, fresco, traidor...quando ele usou esta
palavra, traidor, Epifânio interveio: “Traidor? Como assim traidor Carlinho?
Por que traidor? O que foi que você viu que o leva agora a chamar MH de
traidor? Você o viu fazendo o quê?”... Carlos Magno retrucou a pergunta de
Epifânio: “ Ora ele estava fazendo sacanagem com aquele gayzinho do André
Giovanini no quarto dos próprios pais, você viu Epifânio, valente também viu”.
Epifânio: “O que eu vi foi um amigo muito cruel tentar destruir o espírito de
outro amigo humilhando-o com palavras duras de quem é incapaz de perdoar aquilo
que, em seu conceito, é considerado falha grave...o que vi foi a tentativa
desesperada de um amigo para se ver livre da vergonha que um de seus amigos
poderia lhe causar com sua preferência sexual...isso foi o que vi Guepardo...vi
também o amigo humilhado sem forças para se defender de sua crueldade, por
encontrar-se numa situação não convencional...forças essas que um dia foram
usadas em seu benefício Carlos Magno, lembra? Quando você caiu do cajueiro do
Neco e os cachorros estavam lá embaixo, quem pulou depressa para chamar a
atenção dos cachorros que saíram em perseguição a ele enquanto você subia
amedrontado na árvore novamente? Quando sua mãe ficou doente, e teve que tomar
aqueles remédios que fizeram o cabelo dela cair todinho e morria de vergonha de
sair à rua, até mesmo para ir à igreja ou à feira comprar mantimentos para
casa,e não tinha forças nem para levantar da rede para lhe fazer comida, a ti a
teu pai, quem foi o primeiro a rapar toda a cabeça em solidariedade a ela?
Coisa que nenhum outro de nós, nem mesmo tu, foi capaz de fazer por ela.... E
quem ia lá na tua casa fazer tua comida moleque?” ...Epifânio foi ficando
nervoso... “ Quando tu se apaixonou pela Amandinha do Areal, e não sabia falar
nada pra conquistá-la, nem se vestir direito sabia, quem foi que escreveu
aquelas cartas de amor pra ela em teu nome, aquelas mesmas cartas perfumadas, e
agora sabemos porque eram tão perfumadas, te fizeram passar bons momentos com
aquela menina moleque mal agradecido...e quem foi contigo lá no atacadão do
norte escolher as roupas que combinariam com o estilo do poeta que escrevia pra
ela, na noite da tua conquista? já pensou se eu fosse agora lá na casa dela e
dissesse que tu não teve capacidade de escrever nada daquilo e quem escreveu
foi Manelzinho, e quem te vestiu foi Manelzinho???” Com que cara tu irias ficar
quando a encontrasse pela rua?” Carlos Magno sentou num tronco caído, os outros
que estavam inclinados a tomar partido por Guepardo murcharam e abaixaram a
crista e também se acomodaram pelo chão enquanto Epifânio finalizava seu
discurso...”Sou capaz de lembrar ajuda de MH a cada um de vocês, e aquele que
está se achando melhor que ele, que atire a primeira pedra e eu juro...atirarei
a segunda nele e eu mesmo o expulsarei da turma”...todos de cabeça baixa....em
silêncio....”Se não somos capazes de respeitar as diferenças que nos unem,
seremos mais incapazes de observarmos e mantermos em rédeas curtas as igualdades
que nos separam uns dos outros“...Epifânio se aproximou de MH que estava
sentado e levantou o amigo pelas mãos....abraçou-o....e deu-lhe um longo beijo
na maçã do rosto....depois cada um de nós o abraçou e beijou...mas
Guepardo...se aproximou e....mais envergonhado que MH ao ser flagrado em
situação suspeita...disse: “Me perdoe...fui um idiota meu amigo...amo você”...e
ambos chorando se abraçaram... e todos se abraçaram num fraternal abraço de
amigos.
Epifânio não era a favor do homossexualismo, nem era
contra, apenas não gostava de julgamentos injustos e preconceituosos sobre
aqueles que tão somente faziam escolhas diferentes das que fazíamos. Qualquer
que fosse a decisão tomada por alguém, seria respeitada por nós, ainda que não
concordássemos, a não ser que o resultado de tais escolhas fossem ferir ou
maltratar alguém, mesmo que não fosse ninguém do nosso círculo de amizade ou
familiar. A injustiça e a intolerância não faziam parte do nosso dia a dia, e
quando um de nós se mostrava inclemente e austero com outra pessoa, Epifânio
sempre dava um jeito de nos mostrar outra maneira de lidar com aquilo...sempre
uma maneira melhor.
Epifânio gosta de gente.
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