terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Epifânio Augusto em: Diferentes, mas iguais.

 
Capítulo XIV



Diferentes, mas iguais.

 

A luta de nosso amigo continuava, e as pessoas já não acreditavam que ele conseguiria sair daquele estado vegetativo. O discurso dos médicos que o acompanhavam esfriava mais a cada dia. Não falavam mais em retorno do jovem do coma, tampouco faziam qualquer menção à esperança de uma vida normal, caso voltasse. O fato é que entre nós não havia desesperança, só havia expectativa da hora em que ele acordaria e sairíamos juntos para fazer nossas artes pela cidade e aporrinhar alguns adultos que não gostavam muito de nós. 213 chegou a sugerir que retirássemos o garoto do hospital na calada da noite e o levássemos até a cachoeira do profano e déssemos um mergulho com ele para ver se acordava dessa situação, afinal, aquelas águas conheciam muito bem aquele corpo, vestido ou despido nada era novo para aquela cachoeira em Epifânio.

Um dos seguranças do hospital ficou nosso amigo de tanto que conversávamos com ele, multi-homem o apelidou de ”Cara de aborto” (dá pra imaginar a beleza dele não é?), andava com uma arma no coldre, não sei pra quê, quem iria querer assaltar um hospital?

Não parávamos de lembrar das histórias vividas com Epifânio, como no dia em que chegamos à casa de MH, chamamos e ninguém apareceu. Rodeamos a casa e fomos por trás, estranhando o fato da porta dos fundos estar aberta e ninguém aparecer. Estávamos apenas Guepardo, eu e Lôro...entramos em silêncio como que desconfiando que havia algo errado na casa e qual não foi nossa surpresa ao encontrarmos MH abraçado no quarto da mãe com André Giovanini, um garoto da escola que todos sabiam gostar de meninos, e de quem muitos tiravam sarro por essa preferência sexual do guri, menos Epifânio. Nós mesmos não gostávamos de nos enturmar com ele, nem de falar com aquele afeminado, mas falávamos por respeito, e agora, víamos MH...fazendo...sabe-se lá o quê com ele no quarto da mãe, abraçados, sozinhos....será? André saiu correndo quando nos viu e Manelzinho começou a gaguejar, tentando se explicar, que não era nada daquilo que estávamos pensando e coisa tal...e...nada....guepardo foi logo aloprando: “Viado, tu é viado Manel, sempre desconfiei de ti, viadinho da porra!!! Não vai mais fazer parte dos valentes, não merece andar mais com a gente seu arrombado de merda!” . Carlos Magno estava de fato com raiva e com nojo daquele que até minutos atrás era amigo de todos...eu confesso, naquele momento fiquei muito decepcionado com MH, não imaginava que ele gostava de homens também...Carlinho não parava de xingá-lo, prometendo até porrada nele, de repente saiu correndo aos berros de que iria contar aos outros da turma e que logo MH seria expulso por todos os Valente. Manelzinho sentou aos prantos no colchão velho dos pais dele, as janelas estavam fechadas, o quarto estava meio escuro, a luz que entrava era das brechas da parede, apesar de ser pouco mais de meio dia, hora em que geralmente sua mãe levava o almoço do marido no serviço. Apesar de toda a situação, Carlos Magno foi cruel com ele...muito cruel com o amiguinho...Epifânio nada disse, mas não ficou nada feliz, a cara era de muita decepção...em silêncio ficamos ouvindo o choro de MH...choro de vergonha pela descoberta e de tristeza pela expulsão dos valentes, sabia que não poderia mais andar conosco, que teria que responder quando perguntassem porque não era mais da nossa turma...Epifânio se aproximou da cama...sentou ao lado do guri que continuou de cabeça baixa chorando...olhou em minha direção e na da janela...entendi...abri o janelão e a claridade do sol adentrou no recinto...perguntou a MH sem se dirigir diretamente a ele: “É isso que você quer Manel? Se agarrar com garotos?”...quando Manel levantou a cabeça e ia responder Epifânio continuou sua fala: “Manel, a resposta a essa pergunta não é importante pra mim, mas sim pra você...a decisão que tomar a esse respeito hoje terá conseqüências para o resto de sua vida...mas de SUA vida...lembre disso...de SUA vida. Quanto a mim...bom...somos amigos...e nada vai mudar isso, e se alguém me apelidar por sua causa não terá problema, ainda assim seremos amigos, pois sei que jamais faltará respeito entre nós parceiro, e quanto ao Carlinho, resolveremos isso quando estivermos todos juntos...agora vamos encontrá-los”. MH tentou dizer que não queria ir, que estava com vergonha dos outros, mas Epifânio não permitiu que desistisse de encarar a turma...”Se não vier, não terá mais o respeito dos outros...precisa mostrar que continua sendo o mesmo, apesar da diferença, você é igual a nós”. Chegamos ao buritizal onde nos encontraríamos para a arte do dia e lá estavam Guepardo (Carlos Magno), Camarão (Mário Alberto) e Sobrancelha do capeta (Paolo), todos de cara amarrada...Carlinho já espalhara o ocorrido.

A chegada foi em silêncio, os demais foram logo perguntando o por quê de MH está ali com a gente. MH nada falou, Guepardo recomeçou os xingamentos de bicha, viado, boiola, fresco, traidor...quando ele usou esta palavra, traidor, Epifânio interveio: “Traidor? Como assim traidor Carlinho? Por que traidor? O que foi que você viu que o leva agora a chamar MH de traidor? Você o viu fazendo o quê?”... Carlos Magno retrucou a pergunta de Epifânio: “ Ora ele estava fazendo sacanagem com aquele gayzinho do André Giovanini no quarto dos próprios pais, você viu Epifânio, valente também viu”. Epifânio: “O que eu vi foi um amigo muito cruel tentar destruir o espírito de outro amigo humilhando-o com palavras duras de quem é incapaz de perdoar aquilo que, em seu conceito, é considerado falha grave...o que vi foi a tentativa desesperada de um amigo para se ver livre da vergonha que um de seus amigos poderia lhe causar com sua preferência sexual...isso foi o que vi Guepardo...vi também o amigo humilhado sem forças para se defender de sua crueldade, por encontrar-se numa situação não convencional...forças essas que um dia foram usadas em seu benefício Carlos Magno, lembra? Quando você caiu do cajueiro do Neco e os cachorros estavam lá embaixo, quem pulou depressa para chamar a atenção dos cachorros que saíram em perseguição a ele enquanto você subia amedrontado na árvore novamente? Quando sua mãe ficou doente, e teve que tomar aqueles remédios que fizeram o cabelo dela cair todinho e morria de vergonha de sair à rua, até mesmo para ir à igreja ou à feira comprar mantimentos para casa,e não tinha forças nem para levantar da rede para lhe fazer comida, a ti a teu pai, quem foi o primeiro a rapar toda a cabeça em solidariedade a ela? Coisa que nenhum outro de nós, nem mesmo tu, foi capaz de fazer por ela.... E quem ia lá na tua casa fazer tua comida moleque?” ...Epifânio foi ficando nervoso... “ Quando tu se apaixonou pela Amandinha do Areal, e não sabia falar nada pra conquistá-la, nem se vestir direito sabia, quem foi que escreveu aquelas cartas de amor pra ela em teu nome, aquelas mesmas cartas perfumadas, e agora sabemos porque eram tão perfumadas, te fizeram passar bons momentos com aquela menina moleque mal agradecido...e quem foi contigo lá no atacadão do norte escolher as roupas que combinariam com o estilo do poeta que escrevia pra ela, na noite da tua conquista? já pensou se eu fosse agora lá na casa dela e dissesse que tu não teve capacidade de escrever nada daquilo e quem escreveu foi Manelzinho, e quem te vestiu foi Manelzinho???” Com que cara tu irias ficar quando a encontrasse pela rua?” Carlos Magno sentou num tronco caído, os outros que estavam inclinados a tomar partido por Guepardo murcharam e abaixaram a crista e também se acomodaram pelo chão enquanto Epifânio finalizava seu discurso...”Sou capaz de lembrar ajuda de MH a cada um de vocês, e aquele que está se achando melhor que ele, que atire a primeira pedra e eu juro...atirarei a segunda nele e eu mesmo o expulsarei da turma”...todos de cabeça baixa....em silêncio....”Se não somos capazes de respeitar as diferenças que nos unem, seremos mais incapazes de observarmos e mantermos em rédeas curtas as igualdades que nos separam uns dos outros“...Epifânio se aproximou de MH que estava sentado e levantou o amigo pelas mãos....abraçou-o....e deu-lhe um longo beijo na maçã do rosto....depois cada um de nós o abraçou e beijou...mas Guepardo...se aproximou e....mais envergonhado que MH ao ser flagrado em situação suspeita...disse: “Me perdoe...fui um idiota meu amigo...amo você”...e ambos chorando se abraçaram... e todos se abraçaram num fraternal abraço de amigos.

Epifânio não era a favor do homossexualismo, nem era contra, apenas não gostava de julgamentos injustos e preconceituosos sobre aqueles que tão somente faziam escolhas diferentes das que fazíamos. Qualquer que fosse a decisão tomada por alguém, seria respeitada por nós, ainda que não concordássemos, a não ser que o resultado de tais escolhas fossem ferir ou maltratar alguém, mesmo que não fosse ninguém do nosso círculo de amizade ou familiar. A injustiça e a intolerância não faziam parte do nosso dia a dia, e quando um de nós se mostrava inclemente e austero com outra pessoa, Epifânio sempre dava um jeito de nos mostrar outra maneira de lidar com aquilo...sempre uma maneira melhor.

Epifânio gosta de gente.

 

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