Capítulo 15
Ninguém pode deter a morte
O velho Holandês veio disposto a levar o menino para
sua terra, Amsterdã na Holanda, mas não levaria se dependesse de nós e de
Dalila. Estávamos decididos a tirar Epifânio do hospital e escondê-lo, não
tínhamos noção do risco de morte em que o colocaríamos com essa atitude, apenas
queríamos nosso amigo aqui, conosco. Os pais dele já haviam autorizado a
transferência, os médicos também não negaram, pois clinicamente ele estava bem,
parecia apenas dormir um sono muito profundo e o que mais motivara tal decisão,
é que o velho viera em seu próprio jatinho. Parecia ser bilionário lá
prazoropa.
Nada podíamos fazer, apenas nos despedir do garoto e
esperar que desse bom resultado essa coisa toda, apesar de sentirmos que com
nossa companhia, mesmo que do lado de fora do hospital, ele pudesse melhorar a
seu tempo.
Dalila estava inconformada, não parava de chorar,
era sofrimento demais viver tal situação depois de tudo o que aconteceu em
Goiás, e pior ainda, era pensar que Epifânio não podia escolher ir ou ficar no
estado em que se encontrava.
(Acorda Lôro, porra!)
Seu Gertjan não desistiria de levar o guri...era
muito estranho...que tanto interesse havia naquela família em Epifânio? Por que
tanto zelo quando se tratava daquele endiabrado menino? Tentamos de todas as
maneiras convencer seus pais a não deixarem levá-lo, mas....sem
sucesso...afirmavam todo o tempo que seria para o bem dele, que teria mais
recursos, que seria bem tratado e coisa e tal. Gertjan não parava de falar em
seu idioma com o filho e em português com a família de Epifânio, parecia até
grosseiro em alguns momentos, levantando a voz para Dona Cristina e seu
Otacílio...chegou a dizer que aquela situação de amor adolescente não estava
fazendo nada bem para o garoto. Ora essa, e quem era ele pra se meter na vida
do nosso amigo? O que ele sabia sobre o amor de Dalila e Lôro? Morava a
milhares de quilômetros de distância, como podia saber alguma coisa? O fato é
que estava decidido a separar Epifânio de Dalila, por bem...ou por mal.
Meu coração começou a sofrer de raiva, angústia e
medo...raiva daquele gigante, angústia de não poder fazer nada para evitar a
transferência do doente e...medo de não mais ver Epifânio vivo. Os valentes
queriam brigar, queriam gritar, nossos pais diziam que nada podíamos fazer, pois
os pais dele já haviam autorizado a viagem. Choramos...choramos a ausência
mesmo ainda estando na presença dele.
Dona Betsie, não suportando nos ver naquele
sofrimento todo, conhecendo o sogro e sabendo que ele não desistiria de separar
o casal de namorados, sugeriu algo que traria maiores dores ainda, mas que não
tiraria nosso amigo de perto de nós....sugestão aceita...o jato voaria naquela
noite mesmo para a Holanda e traria uma equipe de médicos e todo equipamento
necessário para avaliar a situação de Epifânio e tirar o guri do coma.
Naquela noite o jatinho de seu Gertjan partiu rumo à
Amsterdã, mas não foi levando sorrisos, tampouco deixou alegria. Só aceitou não
levar Epifânio se, de alguma maneira, pudesse por fim àquele amor que só trouxe
dor e sofrimento tanto para o garoto como para todos os que lhe queriam
bem...ofereceu à família de Dalila um vida melhor à garota se ela fosse com ele
para estudar na Europa e se tornar alguém na vida, e ficasse bem longe de
Epifânio. Quem sabe um dia, voltaria ao Brasil numa nova situação. Mesmo sem
querer ir...ela foi...era o sacrifício que faria em favor de Epifânio
permanecer junto aos pais e amigos e a todos que o amavam...ela sentia no
coração que ele ficaria melhor aqui...e sem ela. A menina foi aos prantos como
se fosse rumo à morte. O jato traria os médicos e os equipamentos...o velho
parecia não medir esforços para ajudar o menino e deixá-lo livre daquela coisa
do coração...o amor. Chego a pensar se aquele homem sabia o que era amar.
Na manhã seguinte o céu trovejava e relampejava,
parecia querer lançar uma tempestade daquelas, mas não caia chuva, apenas
trovões e raios...a princípio tímidos. Seu Sabá e Dona Ninita chegaram na
charrete do sítio para visitar o menino que tanto admiravam e que havia salvo a
vida de seu neto Mário Alberto, que para nós era apenas...Camarão.
A tempestade de raios apertou, os trovões se
intensificaram, a chuva começou cair e não era qualquer chuva, era realmente
torrencial de dar medo até em bagres do rio. Os médicos de plantão autorizaram
nossa entrada para vê-lo na UTI. Agora eu já não sabia se queria que ele
acordasse, afinal, descobriria que Dalila não estava mais aqui e que nós nada
fizemos para deter o avô de Ankie. Não havia nenhum outro paciente naquele
lugar, só o guri que parecia mais desbotado do que era, de tão pálido que
estava...deitado...olhos fechados...inerte...parecia morto....estava
morto....todos em silêncio...velando-o...MH perguntou se alguém sabia
rezar...ou orar....Sobrancelha disse que sabia dizer o “amém”...Guepardo sabia
começar o “pai nosso”, mas só ia até o “santificado seja o teu nome”...não ia
muito longe não....sugeri que tocássemos em seu corpo e pensássemos em Deus e
em coisas boas...sei lá...na hora pareceu meio ridículo, mas....foi o que
fizemos...tocamos seu corpo...um nos pés, outros nas pernas, outros nos braços
e eu....uma mão no coração e a outra no cabelo loiro daquele preto feio.....ele
foi tocado pelos valentes.....os seis....
.........os seis valentes....foi tocado pelos amigos... e.... ........de repente seu corpo começou tremer e
ter espasmos involuntários, era estranho vê-lo se debatendo ainda como
morto...gritamos pela enfermeira, que veio correndo junto com o médico e já foi
nos expulsando de lá. Não sabíamos bem o que estava acontecendo, mas pela
correria e gritaria na UTI o lance era sério. Passaram por nós no corredor
alguns auxiliares com um aparelho que mais tarde vim saber o nome
...desfibrilador...nem imaginava para que servia, mas levaram aquele troço
correndo para a UTI onde Epifânio estava. Não me contive e abri um pouco a
porta e vi o médico em cima de meu amigo empurrando o peito dele pra baixo
seguidamente...pensei: “Que merda é essa? Tá tentando matar o moleque?” Cara de
aborto chegou com outras pessoas e nos levaram para fora do hospital, a
gritaria continuava e ainda não entendíamos o que estava acontecendo. Ora se
Epifânio começou a se mexer era porque estava saindo do coma...ou não?
O médico veio falar com a família do garoto...deu a
notícia que tanto não queríamos saber...Epifânio estava morto...deu-se um
berreiro desesperado de todos os adultos e...dos valentes também...os meninos
se abraçaram em grande choro... aquela
manhã parecia noite de tão escura que estava
...a natureza estava sentindo a morte de Epifânio... o céu chorava
enormes gotas de chuva... ... ...............Deus chorava.
Eu não conseguia entender, não conseguia chorar,
parecia estar em transe, minha mente não concebia aquela morte, não acreditava
que Epifânio, o moleque cheio de vida que conhecíamos estava
morto...morto....não podia ser real aquilo tudo...lembrei das palavras de
213...a cachoeira do profano, o lugar onde os macumbeiros faziam oferendas e
sacrifícios de pequenos animais e para quem o lugar se chamava “cachoeira das
almas”...Epifânio não gostava quando íamos lá e víamos galinhas mortas e outros
animaizinhos mortos, mas não mexia em nada e não nos deixava mexer
também...respeitava...lembrei do caldo que o lôro levara daquelas águas ao
ponto de sair nu delas...comecei a ficar nervoso, não poderia desistir assim de
Epifânio, os médicos tentaram o que puderam...e nós? Os outros continuavam
chorando descontroladamente...assobiei bem alto
“Fiiiiiiiiiiiiiii!!!!!’...viraram pra mim chorando muito...e como não me viram
chorar...pararam por um instante....meu coração estava acelerado, as pernas
tremendo, estava todo arrepiado e com cara de ...de....sei lá...estava fora de
mim...olhei fixamente para cada um e virei o rosto em direção à porta da
UTI...ouvíamos os gritos, mas não mais pertencíamos àquele lugar...àquele
momento...àquela morte......a chuva caia forte...os raios e trovões
aumentaram...a energia faltou e num clarão de um raio que rasgava os céus e se
mudava do oriente ao ocidente, vi pequenos olhos brilharem...os valentes
entenderam... tínhamos que fazer uma última tentativa....nada falei...não
precisava...Camarão e Sobrancelha do capeta correram para buscar a charrete de
seus avós, Codinome 213 providenciou uma maca com rodinhas, MH e eu entramos na
UTI para sequestrar o corpo de Epifânio...o corpo de nosso amigo...nosso
irmão....saímos daquela sala ainda no escuro e nos guiando apenas com os
clarões dos relâmpagos...quando chegamos ao salão de entrada do hospital a cena
que vimos nos assustou sobremaneira...Guepardo acuou todas as pessoas que
porventura pudessem querer nos deter, com o estilingue esticado até o toco,
apontando na direção de cara de aborto que não se atreveu a sacar da arma...a
charrete estava em frente, o céu desabava em água e raios...deitamos o corpo de
Epifânio no soalho da carroça e partimos rumo à cachoeira do profano...olhamos
pra trás e Guepardo continuava apontando o estilingue, só que agora na porta da
frente do hospital...paramos a charrete e gritamos por ele que correu e saltou
pro carro...Mário Alberto gritava com o cavalo que parecia Pégasus, com as asas
abertas trotando o vento...em pouco tempo chegamos àquelas águas e nos lançamos
com aquele corpo inerte na corredeira que pela força da chuva estava muito
forte...gritamos com Epifânio...”ACÓÓÓÓRDAAAA!!! ABRE OS OOOOLHOS
LÔÔÔROOOO!!!!”...Epifânio estava na água...os valente estavam na água....de
repente vimos um raio em forma de flecha furar o caudaloso igarapé
“tchuuuufff!! E uma enorme descarga elétrica nos lançou longe... ...
...todos ... ... ...inclusive
Epifânio.....ficamos atordoados....levantei com dificuldade e vi que acontecia
o mesmo com os outros....olhamos para a margem mais distante e....Epifânio
estava em pé apoiando-se numa pedra e nos olhando....a chuva não permitia
visualizar com nitidez, mas parecia não estar só... havia um guerreiro
indígena segurando arco e flechas com ele....sumiu...nos
aproximamos dele e o ouvimos dizer com raiva:
Que porra é essa???? Estão ficando doidos é?...Estão
querendo me matar?
Hahahahahahaha ele voltou....Epifânio está vivo....a
alegria tomou conta de todos!
Por
Ricardo Serrão
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