Capítulo XI
Dalila
Dalila
Em Busca do amor perdido
As férias chegaram, aproximavam-se as festas de fim de ano
e algo de bom surgia no ar nesse período. Preparávamos tudo com carinho, e
criávamos expectativas pelo Natal e o Ano Novo.
Estava me embalando na rede, deitado de lado, com uma das
mãos dando impulso no chão de madeira, cheio de brechas, espiando da varanda
uma vizinha que morava do outro lado da rua de piçarra, Helen Regiane,
ela tinha a canela comprida, mais comprida que uma semana de fome,
olhão graúdo, meio esbugalhado, pense numa gatinha, metida que só ela, não dava
mole pra ninguém, parecia meio...sei lá...retardada, porque não dar
mole nem pra mim que era o mais lindinho da turma só sendo dodói da cabeça
mesmo.
Vi quando Dona Cristina boiou lá na cabeceira da rua, bem pequenina
àquela distância, andando rápido, chega levantava poeira com os pés, por trás
dela dava pra ver um céu de nuvens escuras prenunciando tempestade, afinal, já
estávamos no período das chuvas. Levantei puxando pelo punho da rede. Ela
chegou avexada com um envelope na mão: R....(ela quase me chama pelo
nome...coisa que eu não gosto até hoje) digo, Valente, isso é pra você, estava
na rede do Epifânio que entrou no mato pra caçar há três dias e ainda não
voltou, e o pior, não levou a espingarda nem o facão...meu filho pode estar
morto nesse momento no bucho de uma sucuri ou de uma onça. Você sabe onde ele
vai caçar, pode ajudar a encontrá-lo?Tô preocupada, e o pai dele já tá querendo
dar parte no posto da polícia do sumiço do menino. Tem seu nome aí, abra, por
favor, Valente. Meu coração de mãe tá apertado e sinto que meu filho está
encrencado ou vai se encrencar...leia por favor Valente.
Olhei para a garota do outro lado da rua que, vendo que
alguma coisa estava errada se aproximou de nós e perguntou à D. Cristina, que
já deixava rolar uma lágrima, se estava tudo bem. D. Cristina se desmanchou em
choro e abraçou a menina sem nada dizer. A garota me olhou por sobre os ombros
da mãe de Epifânio...e...meneando olhos e cabeça, perguntou do que se tratava.
Peguei o envelope e realmente tinha meu nome escrito, e
com a letra de Epifânio. Abri meio ressabiado, afinal, em toda a minha
vida jamais recebera qualquer correspondência que não fosse os injustos
bilhetes da escola para meus pais, mas esses, claro, o Epifânio assinava por
nós, ainda mais um papel com meu nome escrito pelo lôro...sei não...isso vai
feder a cocô amanhecido na privada! pensei.
No envelope havia três papéis, dois enrolados e um semi
aberto, o que decidi abrir primeiro. No bilhete estava escrito assim:
Valente...meu irmão... desculpa não ter falado com você
antes, mas há alguns dias estou vivendo uma dor que somente a mim pertence...algo
que preciso resolver sozinho, e sei que se dissesse qualquer coisa para vocês,
certamente não me deixariam resolver da maneira que preciso resolver. No mês
passado escrevi uma cartinha pra Dalila, pois soube que uma tia de MH iria pra
Goiás...dias depois quando voltou, aquela senhora mandou me chamar e me deu um
envelope de carta, colado...abri todo afoito, louco por notícias de Vida e...no
envelope só tinha a minha carta e mais um pedaço de papel...são esses dois aí
em sua mão.
O primeiro era a carta de Epifânio para Dalila e o
segundo...de Dalila.
Decidi compartilhar com todos os originais.
...Quando você estiver lendo esse bilhete já estarei bem longe, vou pegar aquela estrada que dizem que vai dar em Rondônia e de lá tem outras estradas para outros estados, e chegarei a Goiânia onde ela está morando agora, sei que chegarei lá...a pé se preciso for... mas não se preocupe e acalme meus pais, estarei bem, pelo menos no que diz respeito à minha segurança,....já ao meu coração...está apertado, com medo do que pode ter acontecido à Dalila.
...Quando você estiver lendo esse bilhete já estarei bem longe, vou pegar aquela estrada que dizem que vai dar em Rondônia e de lá tem outras estradas para outros estados, e chegarei a Goiânia onde ela está morando agora, sei que chegarei lá...a pé se preciso for... mas não se preocupe e acalme meus pais, estarei bem, pelo menos no que diz respeito à minha segurança,....já ao meu coração...está apertado, com medo do que pode ter acontecido à Dalila.
Meu amigo não fora pego por cobra grande ou onça. Se fosse
por bicho certamente teria se safado da morte, mas foi pego por uma força mais
poderosa e mais destrutiva....o amor....
Dona Cristina se desfez em prantos como criança, seu rosto
logo se enlameou com a mistura de lágrimas e poeira da estrada, e a menina que
conosco estava, agora sabia menos ainda o que fazer...eu ainda menos....não era
como Epifânio, ele saberia o que fazer, mas eu?...pensei um pouco, preocupado
com o amigo...e resolvi agir.
Deixei sua mãe em casa, ela iria conversar com o marido,
tentar acalmá-lo, e fui à casa de Ankie. Pensei em pedir ajuda a seu pai.
Cheguei, a família estava reunida em derredor de uma novilha recém nascida que
recebia os cuidados de um veterinário da capital, seu Ardjan era homem de
posses e sabia tratar bem do que era seu. Me viram chegando e Ankie correu para
me abraçar, um caloroso abraço de saudade, como se as aulas tivessem acabado há
muito tempo. Depois da confusão com os garimpeiros ela pôde se aproximar mais
de nós, seu pai não se incomodava mais.
-Valeeente!!!! Que boooommmm que você tá aqui!!!
O pai da menina, mesmo não sendo
mais inimigo, estava longe de ser amigo, olhou-me com aquele olhar de gente
grande, de quem não está satisfeito com a presença e entrou na casa. Dona
Betsie me recebeu com um sorrisão agradável perguntando que bons ventos me
traziam ali. Contei-lhes parte da história e disse que viera ali falar com seu Ardjan, vê se ele poderia me ajudar ou, pelo menos,
me orientar no que fazer.
A matriarca entrou na casa e ficamos,Ankie e eu, esperando
uma resposta do lado de fora.
Dona Betsie apareceu na varando e disse para eu
entrar...entrei...elas não. Seu Ardjan me esperava no escritório, atrás de uma
grande mesa, sentado numa poltrona que parecia uma cama de solteiro com encosto...até
de casal, quem sabe! As paredes não apareciam, pois estavam ocultas em toda sua
extensão por uma enorme estante cheia de livros, de todas as cores, tamanhos, temas,
e a maioria na língua dele, mas tinham muitos em português também, afinal, sua
filha estudava em escola brasileira. Vários
sobre criação de gado, e plantação de mogno. Lembro de ter ouvido que quando
ele veio para o Brasil, era novinho, recém casado com dona Betsie, tinham
ambos, pouco mais de 18 anos, Ankie nascera no Brasil, logo depois, e quem os
trouxe e comprou as terras que lhes pertenciam tinha sido seu pai, um jovem
senhor chamado Gertjan, também Holandês é claro, que, nos meses que passou aqui,
iniciou várias construções, como a escola onde estudávamos, o horto da cidade,
a biblioteca municipal, algumas pracinhas...acho que era a forma dele de
agradecer a recepção da cidade ao seu unigênito filho e sua linda e jovem
esposa.
Contei a Seu Ardjan o que me levara ali naquele dia e
ele...pensativo...olhando para fora da janela, balançando a cabeça
negativamente, como que pensando: “- vou me meter de novo com essa gente...com
essa molecada...no quê esse neguinho do cão se meteu agora?”...levantou-se, foi
até o telefone, aquele de disco que faz triiimmmm, e discou para alguém,
estranhei a quantidade de vezes que ele girava aquela rodela, pareceu mais de
20 vezes...esperou com o fone no ouvido...esperou...mais de um minuto se passou
e..... me olhando com cara de quem sente que vai se meter em encrenca por causa
de Epifãnio...de repente falou algo como: “-Vader”, e se virou de costas pra
mim e começou a falar na língua dele com a pessoa do outro lado da linha,
passou bons 10 minutos e eu ali...”bocoiando” na conversa. Aproveitei e fui dar
uma olhada na estante e tive uma enorme surpresa quando, na terceira prateleira
de cima, vi a ponta de um papel saindo de um dos livros, olhei para o homem que
continuava ao telefone, puxei uma pequena escada de quatro degraus, acho que
própria para Ankie pegar os livros que precisasse, e...curioso...subi e apanhei
o papel..era uma fotografia em preto e branco, já envelhecida, nela estavam
dona Betsie, Seu Ardjan, a mãe dele que se chamava Dona Jannieke, seu Otacílio
com roupa de agricultor...e Dona Cristina....grávida...ela só tinha
Epifânio...então...ele também estava na foto. O homem tomou o retrato da minha
mão e disse:
“-Não mexa em nada moleque!”.
Me assustei, mas olhei pra ele com olhar de fúria que
Epifânio fazia questão de treinar com a gente, como forma de fazer o adversário
temer antes mesmo da porrada...e disse:
“- Não me chame de moleque!!não tenho medo de ti, nem de ninguém!!!!”...passei
meu recado”.
Ele disse que iria na minha casa, falar com meus pais...iríamos
à Goiás...meus pais chiaram demais, quase não deixaram, tiveram que ir no
juizado de menor umas quatro vezes para que eu pudesse ir na companhia do
Holandês, levamos mais de duas semanas até a viagem estar toda
organizada...iria voar de avião pela primeira vez...até aquele momento nada de
notícias de Epifânio...mas Dona Cristina parecia confiar no Holandês, pois
estava tranqüila com ele no controle da viagem.
Os valentes estavam enraivecidos por não poderem ir,
mas....não foram...partimos.
Quando nos dirigimos ao endereço que nos foi passado pela
família de multi homem, seu Ardjan quis brigar no primeiro minuto...se fossem
irmãos não pareciam tanto um com o outro, ele e Epifânio eram muito
esquentados...lá nos disseram que Epifânio estava preso há seis dias na
delegacia da cidade, fomos de táxi. Quando chegamos o policial que estava de
plantão nos anunciou da seguinte maneira ao delegado:
“-Doutor, a família do demônio da tasmânia tá aqui!”.
O delegado saiu de uma saleta por trás da parede...não
disse uma palavra...apenas estranhou o fato de terem anunciado a família do
preto e encontrou um amarelo-pardo (euzinho aqui) e um loiro branquelão que
mais parecia uma montanha, mas ainda assim...nada falou...abriu a portinhola
que dava acesso às celas, destrancou um cadeado numa porta de grade, nos mandou
entrar e nos levou aos fundos do prédio, onde ficavam duas celas, lado a
lado...na primeira estavam três homens, todos arrebentados, com faixa na
cabeça, esparadrapo na cara, mãos enfaixadas e... um com o braço engessado...bem
caladinhos....na cela do fundão estava...Epifânio...sentado numa cama de
concreto...de cabeça baixa, com o corpo coberto de sangue
coalhado...fedia...não levantou a cabeça com nossa chegada...eu chamei:
“-Lôro!!”....ele atendeu à minha voz e, levantando a cabeça, e com muita
dificuldade o corpo, se aproximou das grades e disse: “-Me deixem aqui!...vão
embora!!”.
O delegado reagiu a essas palavras:
“-Não senhor meu rapaz, aqui mesmo não. E virando-se pra
nós falou pela primeira vez. “-Há dois plantões atrás trouxeram esse rapaz
algemado, tentou tirar a namoradinha da casa dela sem a autorização do pai que
chamou a polícia, ele entrou calmo, sem nada dizer, eu iria deixar ele só
passar a noite aqui e mandá-lo embora pela manhã, nem fiz registro nem nada,
mas de madrugada esses idiotas aí ao lado tentaram comer o pretinho...meu
Deus...a gritaria trouxe todos os plantonistas e os guardas que aqui estavam no
momento para ver o que estava acontecendo, a porrada era intensa, os caras
tentavam dar nele e não acertaram sequer um soco nesse diabo, ele bateu tanto
nesses bandidos que tivemos que salvá-los das mãos dele, já muito machucados e
com ossos quebrados...esse sangue que vocês estão vendo nele não é dele...é
deles (apontou para os três homens que nada falaram), os machucados nele foram
causados pelos cassetetes dos guardas que não conseguiam tirá-lo da porrada com
os meliantes...eu não quero saber nem o nome de vocês, apenas levem esse
demônio daqui embora e tirem ele da cidade hoje....ah! e tem mais, não come há
seis dias. Os caras aí disseram que ele bebe a própria urina...só pode ser o
cão encostado nele.
Saímos dali direto para o hotel em que estávamos, Epifânio
não tinha nenhuma roupa, nem calçado, estava magro demais, tomou banho enquanto
seu Ardjan foi providenciar roupas e sapatos.
À noite, Epifânio comeu uma maçã, duas uvas e um copo de
leite, mas bebeu muita água.
“-Precisamos tirar Dalila daquela casa, ela precisa ir
conosco!”... disse ele.
“-Pare com isso, vamos embora pela manhã, já comprei as
passagens, você precisa ir a um hospital, está fraco demais, vamos amanhã sim e
acabou!” (retrucou seu Ardjan).
Epifânio que estava deitado envolto num lençol grande e
pesado, sentou na beira da cama e olhou fixamente para o Holandês que estava
sentado numa cadeira perto dele, ambos com o rosto na altura do outro, e ambos
nem piscavam, era outra daquelas batalhas mentais, para ver quem desiste
primeiro e pisca, mas nenhum piscava, foram minutos que me pareceram horas, e
então Epifânio abriu a boca:
“-Eles a estupram desde que tinha 8 anos de idade...ela era
...e ainda é...só uma criança...da idade de Ankie...precisamos tirá-la de lá
brother...eles já fizeram ela abortar um filho e ela nem mesmo sabe de quem era...
“...se era do tio....”
Ardjan arregalou os olhos num típico olhar de espanto...
...fiquei nervoso...
Epifânio continuou
“....se era de um dos dois
irmãos....”
Ardjan levantou-se como um mensageiro da morte...os olhos
avermelharam, a pele queimou de repente, os dentes rangiam de ódio...
...Fiquei com medo do que poderia fazer....
“....ou....e se era do próprio pai.... “...... ......Jesus!!! o que é isso?????
Agora ela me disse que eles vão levá-la pra zona e vender
seu corpo para sustentar a casa...por favor...me ajuda!”. Epifânio estava
frágil, emocionalmente frágil, psicologicamente frágil, fisicamente
enfraquecido, e....chorou... ...um
choro de dor na alma...no coração...um choro de dor no amor.
Ardjan agitou-se pelo apartamento de um lado pro outro,
como onça enjaulada.
Ficamos sem palavra....confesso que naquele dia eu nem
sabia muito o que significava estupro ou aborto, mas, deviam ser coisas
ruins...bem ruins...
O holandês saiu do apartamento, com ira nos olhos, apenas
olhou da porta e disse: “-Fiquem aqui, vou resolver isso”.
Não falei nada, nem o loro, apenas deitei no chão ao lado
da cama dele pra ele saber que eu estava ali...com ele...e que se ele decidisse
invadir a casa dela para tirá-la eu iria com ele....pro tudo ou nada...ele
faria o mesmo por mim....sei que faria.
Chorava baixinho palavras entrecortadas por soluços...tive
a impressão de tê-lo ouvido dizer: “-Seu Índio mentiroso”. Acho que estava
sonhando um sonho ruim.
Acordamos pela manhã com O batavo entrando pela porta nos
chamando para sair imediatamente do quarto, mal escovamos os dentes e lavamos a
cara, Epifânio andava com muita dificuldade ainda, descemos o lance de escada
que levava para fora, Loro não parava de pedir ao holandês que não fizesse
aquilo, que não o levasse embora sem Dalila, gritava algo tipo...”stoppen, stoppen!!”, quase chorando
novamente...(que diacho era isso?)
A conta estava paga, saímos e nos deparamos com a polícia
em frente ao hotel, três viaturas. O delegado que prendera Epifânio estava fora
da veraneio vascaína, os guardas de prontidão, paramos...Ardjan disse: “-Vamos
sair daqui agora, entrem na viatura”. ...Epifânio gritou mais alto: “-geeeeen broeeeeer!!!!!”...Ardjan parou de repente, ficou
mudo...se aproximou de Epifânio, abraçou o menino que se desmanchava em
lágrimas pelo seu amor, pela desventura
da pequena Vida...tentou dar socos no peito do gigante, mas parecia ter perdido
toda a força...estava sem vida....estava....vazio...Ardjan o arrastou como quem
arrasta um amigo bêbado pra fora do bar....cambaleante...parou ao lado da
viatura na qual o delegado estava ao volante....aquele guerreiro exausto da
luta ainda teve ímpeto para lançar aquele olhar de treinamento para o delegado,
o homem devolveu-lhe o olhar, mas não era um olhar de ódio, nem de
fúria... ...era um olhar de
respeito....desceu do carro...abriu a porta e... ...ela estava lá....Dalila estava lá...enrolada
num lençol azul clarinho.... velho....roto...
...loro levantou a cabeça, o tronco, todo o corpo, se enchendo de vigor
como a maré que se agigante sobre a praia...podíamos sentir a vida voltando pra
ele, como um amplo e largo pé de mogno, que se alteia acima das outras árvores ...seus
olhares se cruzaram e ela estendeu a mão para que ele entrasse e a
abraçasse...Epifânio olhou em volta.... o delegado.... os policiais.... ....
....Ardjan....olhou para o Europeu com uma expressão que jamais
esquecerei, um brilho no olhar que nem em mil sóis eu veria novamente.... e
disse: “-Danken u!”. o holandês respondeu com um enigmático gesto que só muito
tempo depois me foi permitido saber o significado...fechou o punho da mão
direita, levou até o lado esquerdo do peito e com o punho fechado da outra mão
deu dois socos firmes no músculo do braço direito....era um código...estranho.
Epifânio entrou no carro...entramos...o
delegado foi na frente com Ardjan lhe passando uns documentos que depois soube
ser do juizado de menores autorizando a viagem de avião daquela menina com a
gente...acho que era falso...mas!!!...
...fui atrás com Epifânio e Dalila que não parava de chorar aninhada ao
peito do meu amigo, ao peito do seu protetor...ao peito do seu amor...direto
para o aeroporto...direto para casa...
...continua...
Por
Ricardo Serrão
Qualquer semelhança é mera coincidência galera....ou não....sei lá...nesse mundo nada mais me surpreende.
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