Capítulo XII
Atravessando o vale sombrio da morte.
Atravessando o vale sombrio da morte.
Nosso amigo havia apanhado muito de
cassetete dos guardas na delegacia e fez a viagem de volta para casa com dores
terríveis pelo corpo. Estava muito fraco...no avião veio amparado pelos braços
de Dalila, mas pareceu dormir todo o trecho...desembarcamos e seu Ardjan o
levou direto ao hospital mais próximo...nada bom...o garoto ficaria internado,
parecia estar com algum tipo de hemorragia interna, o que naquela época nem
imaginava o que significava isso, mas pela cara de seu Ardjan e pela rapidez
com que Dona Cristina e seu Otacílio chegaram, certamente era algo muito
grave...ainda mais porque ficara sob observação na unidade de tratamento
intensivo...desacordado...era informação demais pra mim, eu não sabia o que era
nada daquilo. O fato é que em poucas horas estavam todos os conhecidos lá em
busca de notícias de Epifânio...parentes, vizinhos, amigos,
inimigos....não...inimigos não....Epifânio não tinha inimigos, quando não
gostava de alguém tratava logo de resolver a questão, poucas foram as vezes que
precisou brigar, era mais na diplomacia, mas ficar de rixa com
alguém ele não gostava. Tinha umas 40 pessoas lá, por causa daquele guri....era
muito querido. O médico veio falar com a família que estava ansiosa por
notícias, mas não deixou ninguém além dos pais dele entrar numa sala para
conversar. Foram eternos cinco minutos e o doutor saiu sem nada falar, logo em
seguida Dona Cristina vinha aos prantos sendo acudida pelo marido. Entrei em
pânico pensando no pior, algumas senhoras gritaram, mas não era morte....ainda....Dona
Cristina contou que o médico anunciou a gravidade do caso, as chances de
sobreviver eram mínimas, estava sedado e sendo medicado, mas só dependeria de
como o moleque arteiro iria reagir...Fiquei mais aliviado...se a coisa dependia
de Epifânio, então, terminaria bem...ele sabia se cuidar...daria um jeito de
enganar a morte...sim...daria...
A maioria foi pra casa. Meus pais
quiseram me levar como os pais dos meninos os levaram, mas eu me neguei a sair
dali...queria ficar...estávamos de férias...Dalila também pediu aos tios para
ficar, depois de ter contado toda a história de Goiânia para eles...consentiram...alguns
adultos além dos pais dele ficaram também...professor Antonieldson e seu Ninja
conversavam num canto, eu e Dalila procuramos nos acomodar perto de uma espécie
de lanchonete que havia no local, mas estava fechada...vimos os faróis do carro
de seu Ardjan...parou o carro e desceu uma penca de guri...os valentes...seu
Ardjan pediu aos pais que permitissem que fossem para o hospital, seria bom,
caso Epifânio acordasse, saber que a turma dele estava aqui fora esperando por
ele. Ankie também veio...esteve chorando. Não sei bem o que era ainda, mas
aquela família tinha alguma coisa com Epifânio, estavam sempre por perto, e
aquela menina vivia demonstrando um sentimento diferente por ele...será?!!!
Será que ela gostava daquele preto feio? Ela tão lindinha!!! Não
acredito!...sem falar em Dalila que era outra deusa.
Lembrávamos do dia em que depois de
passar na casa de Rubinho, chegamos na escola e estava tendo um início de
discussão entre professor Antonielson e...adivinhem...o lôro claro, que em pé
iniciava sua fala:
-De novo professor? Já é nota para
o outro bimestre é? O senhor tá adiantando a matéria cedo demais, não acha não?
O professor:
-Como de novo Epifânio? Hoje é que
é o dia da equipe de vocês apresentarem o trabalho sobre os grandes felinos das
Américas, e deixe de ‘embromação” e chame logo sua turma que ainda temos mais
um grupo depois do de vocês.
Rubinho e eu diminuímos o passo à
porta da sala, ficamos ouvindo do lado de fora sem que nos vissem, nos olhamos,
eu e Rubinho, como que nos perguntando: Quando que apresentamos esse trabalho?
Aparecemos na porta, pedimos
licença ao professor para entrarmos, mal colocamos o pé dentro da sala o
filhote do coisa ruim virou-se pra nós e já foi logo nos metendo em jaca:
‘-Pronto, tai o Valente, em quem o senhor confia tanto, pergunte a ele, mas
antes me deixe tentar lembrá-lo de quando foi. Professor, no dia que
apresentamos nosso trabalho o senhor chegou aqui vestido de camisa de manga
curta, de listras em branco e preto, de calça cor de cupuaçú caído de três
dias, nesse dia seu sapato estava sujo de café, acho que o senhor deixou cair
uma gotinha bem na ponta dele quando passou pela copa e Dona Margarete, a
merendeira, lhe deu aquele copinho que o senhor tanto gosta, mas o senhor sabe
que não pode, né? A diretora já avisou que a merenda é só para as crianças que
vêm pra cá sem nada no estômago. Pois é, naquele dia também o senhor estava
muito chateado porque o Bono Vox tinha sido mordido por cobra e estava muito
doente (Bono Vox era o cachorrinho da filha do professor) e a sua
filhinha estava inconsolável em casa, chorando porque achava que o cachorrinho
iria morrer”.
Breve pausa...a essa altura o
professor não só estava de cabeça baixa pensativo, como já parecia
entristecer-se pela lembrança do sofrimento da filha...
Epifânio continuou:
-Lembro muito bem daquele cachorro,
forte, corajoso, como nenhum outro da redondeza...sem o senhor saber, eu o
levei duas vezes quando entrei no mato pra caçar e ele me defendeu da pantera
que andou por aqui um tempo...destemido aquele cahorro...Ele morreu professor?
Perguntou a seco o lôro trazendo de volta o absorto professor...’-Não, não,
antes tivesse morrido o coitado, ficou sequelado do veneno, tá cego de um olho,
fica latindo de cara pro vento como que vendo visagem”....-Ah! Isso não é nada
praquele cachorro, vai tirar de letra, se o senhor deixar ainda levo ele noutra
caçada, vai ser bom pra ele, vai lhe fazer bem pra cachorro...-Você acha
Epifânio? Perguntou o vencido professor...acha mesmo que faria bem ao Bono Vox?
...-Ah professor, se bem não fizer, mal não fará.
Olhei para o multi homem e os
outros que estavam tão concentrados ouvindo a voz do amigo que fazia a
explanação, que até eu tentei puxar da memória o dia que apresentamos o tal
trabalho.
Professor Antonieldson disparou:
-OK!! Lembrei, lembrei...Vou dar
8,0 pra equipe de vocês.
Todos ficaram felizes...foi uma
festa....mas....o filho de uma rapariga do Epifânio não havia terminado o
showzinho dele:
-Lembrou não professor...o senhor
não lembrou não...acho que o senhor tá precisando tomar remédio pra
memória...se tivesse lembrado teria repetido a nota que deu naquele dia...10,0
e com direito a elogio do senhor...lembra não, né? O senhor ainda disse assim,
olhando pra toda a sala: Vocês tem que seguir o exemplo desses meninos
aqui...todo mundo fala mal deles aqui na escola, mas porque não os conhecem
direito....nunca deixaram de fazer nenhum dos trabalhos que pedi...parabéns
garotos...10 com honra.
Nessa hora acho que o professor
começou a desconfiar...era informação demais a ser esquecida assim...Olhou
sério pra Epifânio, olhou em minha direção, como que querendo saber de mim se
tudo aquilo era verdade de fato...mas não me questionou...-Olha aqui Epifânio,
vou dar 9,0, e se deem por satisfeitos hein!!
Tudo bem professor, 9 é uma
excelente nota, o senhor está realmente sendo legal conosco...mas...(cacete
lôro, que porra de MAS é esse, leproso?)...eu não vou mais poder falar a mesma
coisa do senhor quando o seu ‘Ninja” da venda me perguntar se o senhor é um bom
pagador...se é um homem de palavra...porque ele me chamou um dia que o senhor
estava lá bebendo e sem dinheiro e perguntou isso...enchi sua bola...disse que
não conhecia ninguém mais honesto e justo que o senhor, que nessa escola todos
os outros professores vinham lhe pedir dinheiro emprestado porque o senhor era
o único que tinha sobrando, que naquele dia o senhor estava sem grana porque
tinha saído de casa pra fazer visita lá na periferia da cidade onde moram
aquelas criancinhas pobres que não tem o que comer só pra deixar rolos e mais
rolos de alimento praquela gente necessitada de lá e acabou o rancho e o
senhor, que tem um coração enorme, deu todo o dinheiro que tinha no bolso pra
comprar mais alimento... ... ...por que o senhor
acha que o Ninja não saiu mais do seu lado naquela noite?
Meio constrangido pelo fiado na
venda do Ninja, e muito orgulhoso pelas palavras do moleque a seu respeito,
mesmo sabendo que nunca fora a nenhuma comunidade pobre deixar alimento, nem
sobrava-lhe qualquer tostão no bolso dois dias após o pagamento e que na
verdade era ele quem vivia pedindo dinheiro emprestado para os colegas, até
para a merendeira ele já tinha pedido e dado um bolo na coitada, professor
Antonieldson se rendeu: -DEZ, DEZ!!!...e já estão com 2 pontos positivos para o
próximo bimestre.
A campa bateu, a outra equipe nem
apresentou o trabalho porque não deu tempo, saímos rumo de casa, todos
juntos...e de repente camarão perguntou: -Se nós já apresentamos nosso
trabalho, porque o professor não nos devolve o trabalho que lhe demos em papel?
Minha mãe vai ficar orgulhosa se eu chegar em casa com uma nota DEZ.
Epifânio parou, ficou
pensando...pensando....e mais uma vez confessou....
Gente, no dia que eu disse que
apresentamos o trabalho, não estávamos nem na escola, nós estávamos trepados no
cajueiro do Neco, todos de farda, nós sete...uns dois dias antes eu vi quando o
Ninja da venda tentava fazer o cachorrinho da filha do professor vomitar, batia
no cachorro, enfiava banana na boca do cachorro, tava desesperado, vendo aquela
cena, fiquei curioso e fui ver o que tava acontecendo...o velho me viu e ficou
mais nervoso ainda...perguntei bem cinicamente: “-O quê que tá acontecendo aqui
seu Ninja?” Nervoso o velho respondeu...menino de deus, não sei o que fazer, botei
veneno pra rato num pedaço grande de carne e deixei lá no quintal, a porra
desse cachorro cavou por debaixo da cerca e foi comer a merda da carne
envenenada...vai morrer e o professor vem pra cima de mim.
Na hora tive uma ideia!!!!!
Me dá uns pacotes de biscoito que
resolvo problema pro senhor...me deu 5 pacotes de biscoito, dois de macarrão,
quatro de açúcar, um de farinha, reclamei na hora, troco os quatro de açúcar
por quatro de farinha, e ainda me deu duas latas de conserva desfiada...e
quando ia saindo de lá, voltei com uma cara de coitadinho e disse...tamu sem
açúcar lá em casa seu Ninja...me deu os quatro também...peguei o cachorro no
colo, levei até perto da casa do professor, deitei o bichinho que já tava
quieeeeto, sem graaaaça...e gritei bem alto pra todo mundo ouvir...COBRA!
COBRA! OLHA A SUCURIJU QUE ENTROU NO MATO!!!! encheu de gente pra ver, mas eu
dizia JÁ FOI...ENTROU NO MATO.
Pronto!...qualquer um que
aparecesse doente naquela vizinhança seria tratado como mordido de cobra.
À noite estava indo pra igreja
quando vi o professor sentado bebendo, e já tava bêbado, lá no seu Ninja, e viu
quando seu Ninja me chamou pra perguntar no cantinho pelo cachorro...eu disse
que tava tudo resolvido, mas que estava indo pra igreja com muita fome...-Tem bolacha
creme crack aí? O velho me enxotou...mas antes de sair, o diabo me cutucou nos
ouvidos...voltei...sentei bem pertinho do professor que nem me notou e olhei
bem sério pro taberneiro... hihihi...o velho entrou ligeiro e
trouxe a bolacha...sentou no meu lugar e ficou juntinho do professor...quando
passei de volta ainda tava juntinho do professor...
Eu disse: -Epifânio tu é o cão...tu
não presta! Tenho medo de ti mermão!
Presto sim...quem manda beber o
juízo em vez da cerveja?
Apesar da boa lembrança, nosso
amiguinho continuava a luta pela vida, passando pelo vale sombrio da morte.
Fiquei mais intrigado com a relação
dele com seu Ardjan quando Ankie disse algo surpreendente. Não sei se era coisa
da minha cabeça, mas alguma coisa havia naquilo tudo. Ela disse:
-Meu pai ligou hoje para meu Avô lá
na Holanda...ele tá vindo pra cá... ... ... por causa de Epifânio.
Por Ricardo Serrão
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