terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Epifânio Augusto em: Diferentes, mas iguais.

 
Capítulo XIV



Diferentes, mas iguais.

 

A luta de nosso amigo continuava, e as pessoas já não acreditavam que ele conseguiria sair daquele estado vegetativo. O discurso dos médicos que o acompanhavam esfriava mais a cada dia. Não falavam mais em retorno do jovem do coma, tampouco faziam qualquer menção à esperança de uma vida normal, caso voltasse. O fato é que entre nós não havia desesperança, só havia expectativa da hora em que ele acordaria e sairíamos juntos para fazer nossas artes pela cidade e aporrinhar alguns adultos que não gostavam muito de nós. 213 chegou a sugerir que retirássemos o garoto do hospital na calada da noite e o levássemos até a cachoeira do profano e déssemos um mergulho com ele para ver se acordava dessa situação, afinal, aquelas águas conheciam muito bem aquele corpo, vestido ou despido nada era novo para aquela cachoeira em Epifânio.

Um dos seguranças do hospital ficou nosso amigo de tanto que conversávamos com ele, multi-homem o apelidou de ”Cara de aborto” (dá pra imaginar a beleza dele não é?), andava com uma arma no coldre, não sei pra quê, quem iria querer assaltar um hospital?

Não parávamos de lembrar das histórias vividas com Epifânio, como no dia em que chegamos à casa de MH, chamamos e ninguém apareceu. Rodeamos a casa e fomos por trás, estranhando o fato da porta dos fundos estar aberta e ninguém aparecer. Estávamos apenas Guepardo, eu e Lôro...entramos em silêncio como que desconfiando que havia algo errado na casa e qual não foi nossa surpresa ao encontrarmos MH abraçado no quarto da mãe com André Giovanini, um garoto da escola que todos sabiam gostar de meninos, e de quem muitos tiravam sarro por essa preferência sexual do guri, menos Epifânio. Nós mesmos não gostávamos de nos enturmar com ele, nem de falar com aquele afeminado, mas falávamos por respeito, e agora, víamos MH...fazendo...sabe-se lá o quê com ele no quarto da mãe, abraçados, sozinhos....será? André saiu correndo quando nos viu e Manelzinho começou a gaguejar, tentando se explicar, que não era nada daquilo que estávamos pensando e coisa tal...e...nada....guepardo foi logo aloprando: “Viado, tu é viado Manel, sempre desconfiei de ti, viadinho da porra!!! Não vai mais fazer parte dos valentes, não merece andar mais com a gente seu arrombado de merda!” . Carlos Magno estava de fato com raiva e com nojo daquele que até minutos atrás era amigo de todos...eu confesso, naquele momento fiquei muito decepcionado com MH, não imaginava que ele gostava de homens também...Carlinho não parava de xingá-lo, prometendo até porrada nele, de repente saiu correndo aos berros de que iria contar aos outros da turma e que logo MH seria expulso por todos os Valente. Manelzinho sentou aos prantos no colchão velho dos pais dele, as janelas estavam fechadas, o quarto estava meio escuro, a luz que entrava era das brechas da parede, apesar de ser pouco mais de meio dia, hora em que geralmente sua mãe levava o almoço do marido no serviço. Apesar de toda a situação, Carlos Magno foi cruel com ele...muito cruel com o amiguinho...Epifânio nada disse, mas não ficou nada feliz, a cara era de muita decepção...em silêncio ficamos ouvindo o choro de MH...choro de vergonha pela descoberta e de tristeza pela expulsão dos valentes, sabia que não poderia mais andar conosco, que teria que responder quando perguntassem porque não era mais da nossa turma...Epifânio se aproximou da cama...sentou ao lado do guri que continuou de cabeça baixa chorando...olhou em minha direção e na da janela...entendi...abri o janelão e a claridade do sol adentrou no recinto...perguntou a MH sem se dirigir diretamente a ele: “É isso que você quer Manel? Se agarrar com garotos?”...quando Manel levantou a cabeça e ia responder Epifânio continuou sua fala: “Manel, a resposta a essa pergunta não é importante pra mim, mas sim pra você...a decisão que tomar a esse respeito hoje terá conseqüências para o resto de sua vida...mas de SUA vida...lembre disso...de SUA vida. Quanto a mim...bom...somos amigos...e nada vai mudar isso, e se alguém me apelidar por sua causa não terá problema, ainda assim seremos amigos, pois sei que jamais faltará respeito entre nós parceiro, e quanto ao Carlinho, resolveremos isso quando estivermos todos juntos...agora vamos encontrá-los”. MH tentou dizer que não queria ir, que estava com vergonha dos outros, mas Epifânio não permitiu que desistisse de encarar a turma...”Se não vier, não terá mais o respeito dos outros...precisa mostrar que continua sendo o mesmo, apesar da diferença, você é igual a nós”. Chegamos ao buritizal onde nos encontraríamos para a arte do dia e lá estavam Guepardo (Carlos Magno), Camarão (Mário Alberto) e Sobrancelha do capeta (Paolo), todos de cara amarrada...Carlinho já espalhara o ocorrido.

A chegada foi em silêncio, os demais foram logo perguntando o por quê de MH está ali com a gente. MH nada falou, Guepardo recomeçou os xingamentos de bicha, viado, boiola, fresco, traidor...quando ele usou esta palavra, traidor, Epifânio interveio: “Traidor? Como assim traidor Carlinho? Por que traidor? O que foi que você viu que o leva agora a chamar MH de traidor? Você o viu fazendo o quê?”... Carlos Magno retrucou a pergunta de Epifânio: “ Ora ele estava fazendo sacanagem com aquele gayzinho do André Giovanini no quarto dos próprios pais, você viu Epifânio, valente também viu”. Epifânio: “O que eu vi foi um amigo muito cruel tentar destruir o espírito de outro amigo humilhando-o com palavras duras de quem é incapaz de perdoar aquilo que, em seu conceito, é considerado falha grave...o que vi foi a tentativa desesperada de um amigo para se ver livre da vergonha que um de seus amigos poderia lhe causar com sua preferência sexual...isso foi o que vi Guepardo...vi também o amigo humilhado sem forças para se defender de sua crueldade, por encontrar-se numa situação não convencional...forças essas que um dia foram usadas em seu benefício Carlos Magno, lembra? Quando você caiu do cajueiro do Neco e os cachorros estavam lá embaixo, quem pulou depressa para chamar a atenção dos cachorros que saíram em perseguição a ele enquanto você subia amedrontado na árvore novamente? Quando sua mãe ficou doente, e teve que tomar aqueles remédios que fizeram o cabelo dela cair todinho e morria de vergonha de sair à rua, até mesmo para ir à igreja ou à feira comprar mantimentos para casa,e não tinha forças nem para levantar da rede para lhe fazer comida, a ti a teu pai, quem foi o primeiro a rapar toda a cabeça em solidariedade a ela? Coisa que nenhum outro de nós, nem mesmo tu, foi capaz de fazer por ela.... E quem ia lá na tua casa fazer tua comida moleque?” ...Epifânio foi ficando nervoso... “ Quando tu se apaixonou pela Amandinha do Areal, e não sabia falar nada pra conquistá-la, nem se vestir direito sabia, quem foi que escreveu aquelas cartas de amor pra ela em teu nome, aquelas mesmas cartas perfumadas, e agora sabemos porque eram tão perfumadas, te fizeram passar bons momentos com aquela menina moleque mal agradecido...e quem foi contigo lá no atacadão do norte escolher as roupas que combinariam com o estilo do poeta que escrevia pra ela, na noite da tua conquista? já pensou se eu fosse agora lá na casa dela e dissesse que tu não teve capacidade de escrever nada daquilo e quem escreveu foi Manelzinho, e quem te vestiu foi Manelzinho???” Com que cara tu irias ficar quando a encontrasse pela rua?” Carlos Magno sentou num tronco caído, os outros que estavam inclinados a tomar partido por Guepardo murcharam e abaixaram a crista e também se acomodaram pelo chão enquanto Epifânio finalizava seu discurso...”Sou capaz de lembrar ajuda de MH a cada um de vocês, e aquele que está se achando melhor que ele, que atire a primeira pedra e eu juro...atirarei a segunda nele e eu mesmo o expulsarei da turma”...todos de cabeça baixa....em silêncio....”Se não somos capazes de respeitar as diferenças que nos unem, seremos mais incapazes de observarmos e mantermos em rédeas curtas as igualdades que nos separam uns dos outros“...Epifânio se aproximou de MH que estava sentado e levantou o amigo pelas mãos....abraçou-o....e deu-lhe um longo beijo na maçã do rosto....depois cada um de nós o abraçou e beijou...mas Guepardo...se aproximou e....mais envergonhado que MH ao ser flagrado em situação suspeita...disse: “Me perdoe...fui um idiota meu amigo...amo você”...e ambos chorando se abraçaram... e todos se abraçaram num fraternal abraço de amigos.

Epifânio não era a favor do homossexualismo, nem era contra, apenas não gostava de julgamentos injustos e preconceituosos sobre aqueles que tão somente faziam escolhas diferentes das que fazíamos. Qualquer que fosse a decisão tomada por alguém, seria respeitada por nós, ainda que não concordássemos, a não ser que o resultado de tais escolhas fossem ferir ou maltratar alguém, mesmo que não fosse ninguém do nosso círculo de amizade ou familiar. A injustiça e a intolerância não faziam parte do nosso dia a dia, e quando um de nós se mostrava inclemente e austero com outra pessoa, Epifânio sempre dava um jeito de nos mostrar outra maneira de lidar com aquilo...sempre uma maneira melhor.

Epifânio gosta de gente.

 

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Epifânio Augusto em: Bullying


Capítulo XIII

Bullying

Já era o oitavo dia em coma e meu amigo não dava sinais de melhora, nem mesmo os médicos sabiam o que estava acontecendo com ele, pois o quadro clínico não era próprio do coma, a hemorragia cessara, a febre cessara, a medicação fora aos poucos  sendo suspensa, mas o garoto não voltava, pelo contrário, parecia estar cada vez mais...morto...Nos poucos momentos em que nos deixaram vê-lo pelo vidro da porta, tive a impressão que seus olhos estavam agitados por trás das pálpebras como que ...novamente....em luta com um oponente feroz e de extrema força...quiçá um...   ..tipo...   .....gigante, mas nada dele acordar...
As pessoas acamparam em frente ao hospital, todos torciam por Epifânio, uns crentes oravam, umas senhoras carolas rezavam o terço, tinha até um pai de santo com uma turma no batuque...  ...hum...sei não....   ....tá estranho tudo isso. Comecei a ver pessoas que nem conhecíamos, que souberam da luta do garoto pela vida e da turma dele que não arredava o pé de perto do amigo. Banhávamos nos banheiros das casas daquele bairro, as pessoas abriram suas portas pra nós...mesmo “morto” Epifânio fazia com que nós nos tornássemos o centro das atenções.
Até o pequeno Pedrinho e o Natan, protagonistas de uma das muitas aventuras de nossa turma, estavam lá.
Um dia estávamos sentados no coreto da praça espiando o movimento na escola pertinho...Pedrinho, que era bem mirradinho, bem magrinho, quase esquelético chegou chorando e foi direto falar com Epifânio:
‘-Não agüento mais Epifânio, você precisa me ajudar...o Natan da outra sala não para de mexer comigo, ele é muito maior que eu e fica tirando sarro da minha cara, bate na minha cabeça, toma meu lanche, e nem quero falar nada pro meu pai porque ele vai querer tirar satisfação com o pai dele que é outro maceta e vai acabar tendo briga...e meu pai vai apanhar. Outro dia o pai dele veio buscá-lo de moto e ele bateu na minha cabeça e disse: Esse é o moleque que te falei pai, ele que paga meu lanche! O pai só riu, mas sabia que ele me tomava o lanche ou o dinheiro”.
Ficamos irados, sabíamos quem era o garoto e realmente ele era bem grande na frente do Pedrinho, mas o pai saber que o filho é encrenqueiro, que rouba o dinheiro dos mais fracos na escola e não fazer nada...ah!!! mexeu com Epifânio...sim...mexeu...Ele abraçou o guri que soluçava e disse:
‘-Pedro...chore, mas chore muito, e não esqueça dessa dor e dessa raiva que está sentindo hoje, não esqueça esse sofrimento que alguém maior que você está lhe causando, porque se esquecer, amanhã poderá ser você a causar mal a outro menor que você, ou mais pobre, ou mais feio, ou até menos homem, e se assim acontecer, você será o menino mal que hoje te machuca. Vamos resolver isso...juntos...tá bom?”
O garoto anuiu com a cabeça afirmativamente, agora mais aliviado.
Dois dias depois, a notícia na escola era que uns garotos do bairro mais distante da cidade estavam querendo saber quem era Natan da escola onde Pedrinho estudava, que souberam que ele andou falando mal das garotas da turma deles e que iriam quebrar o garoto na porrada, e que viriam na sexta feira à escola.
Pronto!!! A escola ficou em polvorosa, os pais foram pra cima da direção cobrando segurança, a direção chamou os pais do menino pra saber o que realmente estava acontecendo e em último caso, se necessário, iriam chamar a polícia. O pai do menino já chegou chegando, dando berros no filho, querendo saber o que ele tinha feito de errado, o guri só chorava e dizia que nada, que não tinha feito nada nem dito nada, e nem conhecia esses caras...Ficamos preocupados também, mas Epifânio disse que não iríamos nos meter...ele que se virasse sozinho.
Sexta feira chegou...a escola estava cheia de pais na frente, na hora da saída, a diretora estava do lado de fora, com alguns professores também, e o pai do Natan estava todo estufado por ali...gritava: -Quero saber quem vai se meter com meu filho...vai ter que me encarar primeiro!
Epifânio sentou no seu cantinho de observação, lá.... quietinho...ficamos mais afastados, mas juntos, e não muito longe do lôro...observando a movimentação...mesmo os pais que já estavam com seus filhos sob sua proteção não arredavam o pé da escola, queriam ver no quê aquilo ia dar.
Uma bicicleta apontou no canto da rua...uma bicicleta vermelha, com as rodas niqueladas...uma garota montada...uma garota bem bonita completava aquela bicicleta...um silêncio tomou conta da multidão...ela rodou até bem perto...parou a uns 60 metros de distância de todos...estava com shorts de lycra que delineavam suas belas coxas...me encantei daquele belo exemplar da juventude feminina...voltou e sumiu na esquina...o burburinho foi geral...Ahhhh!!! vamos embora!!! Alguém gritou...quando....a garota apareceu novamente na esquina...e...segundos depois...uma horda de ciclistas...uns 15 garotos e outras tantas garotas...pararam lado a lado...gelei...os valentes recuaram...aos poucos fomos nos aproximando de Epifânio...com medo....as mães que já haviam pego seus filhos tomaram seus rumos, os professores entraram na escola...a diretora...idem...a menina que chegou primeiro apontou para Natan que estava junto ao pai...só ficaram os dois no centro da rua...o pai não tinha mais ação...não ia adiantar correr...a vergonha seria maior...o menino começou a chorar e tivemos a impressão que o pai também...aquele que parecia ser o chefe daquela turma de ciclistas era grande, forte, moreno queimado de sol, e tinha uma enorme cicatriz de facada no rosto...era aterrador....seis deles desceram de seus camelos e se dirigiram para os dois que sobraram da multidão...pai e filho...olhei para Epifânio que não esboçava nenhuma reação...o garoto estava chorando muito abraçado à barriga do pai que nada falava, apenas esperava...a turma chegou perto e parou...ninguém se atrevia a ajudar aqueles dois encrenqueiros...ninguém gostava mesmo deles...mereciam a surra que iriam levar...de repente...chegando rápido por trás, também de bicicleta...Pedrinho...o sequinho....saltou da bicicleta, fazendo barulho como se jogasse a magrela ao chão...passou por Natan e seu pai...deixou seu braço esquerdo esbarrar levemente no garoto que chorava que imediatamente olhou pra saber quem estava ali também...e...se surpreendeu com Pedrinho se colocando em posição de guarda na frente dele e de seu amedrontado pai, mirando aquela galera do outro bairro com olhar de tigre...um olhar que bem sabíamos quem lhe ensinara...era o olhar de treinamento...Olhei para trás e Epifânio agora estava em pé...de braços cruzados em riste como uma estátua, olhando com cara de mal para todos ali...se fizessem qualquer coisa contra Pedrinho a porrada seria inevitável e sangrenta....gelamos...todos os valentes ficaram nervosos...os ‘outros” riram da postura de Pedrinho...ele olhou para Natan...para seu pai....e disse em bom tom...todos ouviram: ‘-Sozinhos vocês não estão”. Epifânio saltou da mureta e nos olhou...nos olhos...olhou para cada um individualmente...(me arrepio só de lembrar da cena) ...aquele olhar era a nossa deixa...se há injustiça...se há desequilíbrio...vamos equilibrar as forças....quando nem mesmo o pai do garoto que bulinava Pedrinho tinha esperança de sair daquela fria sem levar muita porrada...eis que em seu flanco direito aparecem “MULTI-HOMEM, CAMARÃO E SOBRANCELHA DO CAPETA...e em seu flanco esquerdo “GUEPARDO, CONDINOME 213 E EU” ...Epifânio passou por nós e se colocou ao lado de Pedrinho com os braços cruzados e o peito estufado...olhou pro moleque arretado e perguntou: Tá afim de dar umas porradas em alguém hoje Pedrinho? ...”-tô meeermo!!!” disse o pingo de gente...”-mesmo sabendo que pode apanhar também moleque?”....” nunca tive medo de porrada Epifânio...tenho medo é de bater muito e o outro ficar muito machucado e morrer”...(caralho, esse menino era do mal mesmo!!)...a outra turma ficou em silêncio por alguns minutos...nos olhando...o grandão olhou com ira para Epifânio e Pedrinho e...deu as costas, montou na bike e se foi com seu povo.
Epifânio tocou no ombro do magricelo e, na frente do seu algoz bulinador, disse: “Você é muito corajoso...no futuro fará parte dos valentes”. Pedrinho virou-se, passou por Natan, que estava com seu pai e disse: -Sempre que estiver em apuros, lembre-se...pode contar comigo...pra bater ou pra apanhar estarei do seu lado amigo!”.
Não preciso entrar em detalhes....eles não chegaram juntos à toa no hospital...dali em diante não houve mais bullyng na escola, nem de Natan nem de ninguém contra os mais fraquinhos...
Até onde entendo, bullyng nas escolas só são causados por crianças que são reprimidas ou violentadas tanto física como emocionalmente por pais violentos, e de pouco estudo, o que se reflete nas ações dos filhos.
Dias depois, Epifânio e eu fomos convidados para um churrasco na casa de um parente de Dona Cristina...e lá estava o moreno queimado de sol com a cicatriz na cara...era primo de Epifânio....se abraçaram e me contaram tudo.
Eram quase 16 horas do oitavo dia em que ele se encontrava naquele estado quando seu Ardjan chegou e de seu carro desceu o maior gigante que já apareceu por nossa cidade. O homem era maior que seu Ardjan...também muito vermelho, forte e loiro...era um senhor de pouco mais de cinqüenta anos, estava de terno e gravata, parecia guarda costa de presidente americano...era o avô de Ankie...pai de Ardjan...conversou com seu Otacílio que não sorriu pra ele, e com Dona Cristina, que também não sorriu, mas não o hostilizou...conversaram e Dona Cristina nos olhou com uma cara de angústia...se aproximou, só Dalila e eu nos levantamos, os demais permaneceram sentados na sarjeta olhando pra cima aquele gigante de dois metros de altura...ela disse:
“-Meninos, esse é seu Gertjan, avô da amiguinha de vocês Ankie...e pai de Ardjan...ele veio buscar Epifânio para levar para Europa...lá terá melhor tratamento...
Imediatamente todos se levantaram e... nos colocamos entre ele e a porta de entrada do hospital....Dalila se pôs na frente do homenzarrão e numa postura de mamãe ursa privada da cria ...com os olhos arregalados, cerrou os dentes e disse rispidamente:

“- Tente moço!”


Por Ricardo Serrão.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Epifânio Augusto em: Atravessando o vale sombrio da morte.


Capítulo XII

Atravessando o vale sombrio da morte.

Nosso amigo havia apanhado muito de cassetete dos guardas na delegacia e fez a viagem de volta para casa com dores terríveis pelo corpo. Estava muito fraco...no avião veio amparado pelos braços de Dalila, mas pareceu dormir todo o trecho...desembarcamos e seu Ardjan o levou direto ao hospital mais próximo...nada bom...o garoto ficaria internado, parecia estar com algum tipo de hemorragia interna, o que naquela época nem imaginava o que significava isso, mas pela cara de seu Ardjan e pela rapidez com que Dona Cristina e seu Otacílio chegaram, certamente era algo muito grave...ainda mais porque ficara sob observação na unidade de tratamento intensivo...desacordado...era informação demais pra mim, eu não sabia o que era nada daquilo. O fato é que em poucas horas estavam todos os conhecidos lá em busca de notícias de Epifânio...parentes, vizinhos, amigos, inimigos....não...inimigos não....Epifânio não tinha inimigos, quando não gostava de alguém tratava logo de resolver a questão, poucas foram as vezes que precisou brigar, era mais na diplomacia,  mas ficar de rixa com alguém ele não gostava. Tinha umas 40 pessoas lá, por causa daquele guri....era muito querido. O médico veio falar com a família que estava ansiosa por notícias, mas não deixou ninguém além dos pais dele entrar numa sala para conversar. Foram eternos cinco minutos e o doutor saiu sem nada falar, logo em seguida Dona Cristina vinha aos prantos sendo acudida pelo marido. Entrei em pânico pensando no pior, algumas senhoras gritaram, mas não era morte....ainda....Dona Cristina contou que o médico anunciou a gravidade do caso, as chances de sobreviver eram mínimas, estava sedado e sendo medicado, mas só dependeria de como o moleque arteiro iria reagir...Fiquei mais aliviado...se a coisa dependia de Epifânio, então, terminaria bem...ele sabia se cuidar...daria um jeito de enganar a morte...sim...daria...
A maioria foi pra casa. Meus pais quiseram me levar como os pais dos meninos os levaram, mas eu me neguei a sair dali...queria ficar...estávamos de férias...Dalila também pediu aos tios para ficar, depois de ter contado toda a história de Goiânia para eles...consentiram...alguns adultos além dos pais dele ficaram também...professor Antonieldson e seu Ninja conversavam num canto, eu e Dalila procuramos nos acomodar perto de uma espécie de lanchonete que havia no local, mas estava fechada...vimos os faróis do carro de seu Ardjan...parou o carro e desceu uma penca de guri...os valentes...seu Ardjan pediu aos pais que permitissem que fossem para o hospital, seria bom, caso Epifânio acordasse, saber que a turma dele estava aqui fora esperando por ele. Ankie também veio...esteve chorando. Não sei bem o que era ainda, mas aquela família tinha alguma coisa com Epifânio, estavam sempre por perto, e aquela menina vivia demonstrando um sentimento diferente por ele...será?!!! Será que ela gostava daquele preto feio? Ela tão lindinha!!! Não acredito!...sem falar em Dalila que era outra deusa.
Lembrávamos do dia em que depois de passar na casa de Rubinho, chegamos na escola e estava tendo um início de discussão entre professor Antonielson e...adivinhem...o lôro claro, que em pé iniciava sua fala:
-De novo professor? Já é nota para o outro bimestre é? O senhor tá adiantando a matéria cedo demais, não acha não?
O professor:
-Como de novo Epifânio? Hoje é que é o dia da equipe de vocês apresentarem o trabalho sobre os grandes felinos das Américas, e deixe de ‘embromação” e chame logo sua turma que ainda temos mais um grupo depois do de vocês.
Rubinho e eu diminuímos o passo à porta da sala, ficamos ouvindo do lado de fora sem que nos vissem, nos olhamos, eu e Rubinho, como que nos perguntando: Quando que apresentamos esse trabalho?
Aparecemos na porta, pedimos licença ao professor para entrarmos, mal colocamos o pé dentro da sala o filhote do coisa ruim virou-se pra nós e já foi logo nos metendo em jaca: ‘-Pronto, tai o Valente, em quem o senhor confia tanto, pergunte a ele, mas antes me deixe tentar lembrá-lo de quando foi. Professor, no dia que apresentamos nosso trabalho o senhor chegou aqui vestido de camisa de manga curta, de listras em branco e preto, de calça cor de cupuaçú caído de três dias, nesse dia seu sapato estava sujo de café, acho que o senhor deixou cair uma gotinha bem na ponta dele quando passou pela copa e Dona Margarete, a merendeira, lhe deu aquele copinho que o senhor tanto gosta, mas o senhor sabe que não pode, né? A diretora já avisou que a merenda é só para as crianças que vêm pra cá sem nada no estômago. Pois é, naquele dia também o senhor estava muito chateado porque o Bono Vox tinha sido mordido por cobra e estava muito doente (Bono Vox era o cachorrinho da filha do professor) e a  sua filhinha estava inconsolável em casa, chorando porque achava que o cachorrinho iria morrer”.
Breve pausa...a essa altura o professor não só estava de cabeça baixa pensativo, como já parecia entristecer-se pela lembrança do sofrimento da filha...
Epifânio continuou: 
-Lembro muito bem daquele cachorro, forte, corajoso, como nenhum outro da redondeza...sem o senhor saber, eu o levei duas vezes quando entrei no mato pra caçar e ele me defendeu da pantera que andou por aqui um tempo...destemido aquele cahorro...Ele morreu professor? Perguntou a seco o lôro trazendo de volta o absorto professor...’-Não, não, antes tivesse morrido o coitado, ficou sequelado do veneno, tá cego de um olho, fica latindo de cara pro vento como que vendo visagem”....-Ah! Isso não é nada praquele cachorro, vai tirar de letra, se o senhor deixar ainda levo ele noutra caçada, vai ser bom pra ele, vai lhe fazer bem pra cachorro...-Você acha Epifânio? Perguntou o vencido professor...acha mesmo que faria bem ao Bono Vox? ...-Ah professor, se bem não fizer, mal não fará.
Olhei para o multi homem e os outros que estavam tão concentrados ouvindo a voz do amigo que fazia a explanação, que até eu tentei puxar da memória o dia que apresentamos o tal trabalho.
Professor Antonieldson disparou:
-OK!! Lembrei, lembrei...Vou dar 8,0 pra equipe de vocês.
Todos ficaram felizes...foi uma festa....mas....o filho de uma rapariga do Epifânio não havia terminado o showzinho dele:
-Lembrou não professor...o senhor não lembrou não...acho que o senhor tá precisando tomar remédio pra memória...se tivesse lembrado teria repetido a nota que deu naquele dia...10,0 e com direito a elogio do senhor...lembra não, né? O senhor ainda disse assim, olhando pra toda a sala: Vocês tem que seguir o exemplo desses meninos aqui...todo mundo fala mal deles aqui na escola, mas porque não os conhecem direito....nunca deixaram de fazer nenhum dos trabalhos que pedi...parabéns garotos...10 com honra.
Nessa hora acho que o professor começou a desconfiar...era informação demais a ser esquecida assim...Olhou sério pra Epifânio, olhou em minha direção, como que querendo saber de mim se tudo aquilo era verdade de fato...mas não me questionou...-Olha aqui Epifânio, vou dar 9,0, e se deem por satisfeitos hein!!
Tudo bem professor, 9 é uma excelente nota, o senhor está realmente sendo legal conosco...mas...(cacete lôro, que porra de MAS é esse, leproso?)...eu não vou mais poder falar a mesma coisa do senhor quando o seu ‘Ninja” da venda me perguntar se o senhor é um bom pagador...se é um homem de palavra...porque ele me chamou um dia que o senhor estava lá bebendo e sem dinheiro e perguntou isso...enchi sua bola...disse que não conhecia ninguém mais honesto e justo que o senhor, que nessa escola todos os outros professores vinham lhe pedir dinheiro emprestado porque o senhor era o único que tinha sobrando, que naquele dia o senhor estava sem grana porque tinha saído de casa pra fazer visita lá na periferia da cidade onde moram aquelas criancinhas pobres que não tem o que comer só pra deixar rolos e mais rolos de alimento praquela gente necessitada de lá e acabou o rancho e o senhor, que tem um coração enorme, deu todo o dinheiro que tinha no bolso pra comprar mais alimento...   ...  ...por que o senhor acha que o Ninja não saiu mais do seu lado naquela noite?
Meio constrangido pelo fiado na venda do Ninja, e muito orgulhoso pelas palavras do moleque a seu respeito, mesmo sabendo que nunca fora a nenhuma comunidade pobre deixar alimento, nem sobrava-lhe qualquer tostão no bolso dois dias após o pagamento e que na verdade era ele quem vivia pedindo dinheiro emprestado para os colegas, até para a merendeira ele já tinha pedido e dado um bolo na coitada, professor Antonieldson se rendeu: -DEZ, DEZ!!!...e já estão com 2 pontos positivos para o próximo bimestre.
A campa bateu, a outra equipe nem apresentou o trabalho porque não deu tempo, saímos rumo de casa, todos juntos...e de repente camarão perguntou: -Se nós já apresentamos nosso trabalho, porque o professor não nos devolve o trabalho que lhe demos em papel? Minha mãe vai ficar orgulhosa se eu chegar em casa com uma nota DEZ.
Epifânio parou, ficou pensando...pensando....e mais uma vez confessou....
Gente, no dia que eu disse que apresentamos o trabalho, não estávamos nem na escola, nós estávamos trepados no cajueiro do Neco, todos de farda, nós sete...uns dois dias antes eu vi quando o Ninja da venda tentava fazer o cachorrinho da filha do professor vomitar, batia no cachorro, enfiava banana na boca do cachorro, tava desesperado, vendo aquela cena, fiquei curioso e fui ver o que tava acontecendo...o velho me viu e ficou mais nervoso ainda...perguntei bem cinicamente: “-O quê que tá acontecendo aqui seu Ninja?” Nervoso o velho respondeu...menino de deus, não sei o que fazer, botei veneno pra rato num pedaço grande de carne e deixei lá no quintal, a porra desse cachorro cavou por debaixo da cerca e foi comer a merda da carne envenenada...vai morrer e o professor vem pra cima de mim.
Na hora tive uma ideia!!!!!
Me dá uns pacotes de biscoito que resolvo problema pro senhor...me deu 5 pacotes de biscoito, dois de macarrão, quatro de açúcar, um de farinha, reclamei na hora, troco os quatro de açúcar por quatro de farinha, e ainda me deu duas latas de conserva desfiada...e quando ia saindo de lá, voltei com uma cara de coitadinho e disse...tamu sem açúcar lá em casa seu Ninja...me deu os quatro também...peguei o cachorro no colo, levei até perto da casa do professor, deitei o bichinho que já tava quieeeeto, sem graaaaça...e gritei bem alto pra todo mundo ouvir...COBRA! COBRA! OLHA A SUCURIJU QUE ENTROU NO MATO!!!! encheu de gente pra ver, mas eu dizia JÁ FOI...ENTROU NO MATO.
Pronto!...qualquer um que aparecesse doente naquela vizinhança seria tratado como mordido de cobra.
À noite estava indo pra igreja quando vi o professor sentado bebendo, e já tava bêbado, lá no seu Ninja, e viu quando seu Ninja me chamou pra perguntar no cantinho pelo cachorro...eu disse que tava tudo resolvido, mas que estava indo pra igreja com muita fome...-Tem bolacha creme crack aí? O velho me enxotou...mas antes de sair, o diabo me cutucou nos ouvidos...voltei...sentei bem pertinho do professor que nem me notou e olhei bem sério pro taberneiro...   hihihi...o velho entrou ligeiro e trouxe a bolacha...sentou no meu lugar e ficou juntinho do professor...quando passei de volta ainda tava juntinho do professor...
Eu disse: -Epifânio tu é o cão...tu não presta! Tenho medo de ti mermão!
Presto sim...quem manda beber o juízo em vez da cerveja?
Apesar da boa lembrança, nosso amiguinho continuava a luta pela vida, passando pelo vale sombrio da morte.
Fiquei mais intrigado com a relação dele com seu Ardjan quando Ankie disse algo surpreendente. Não sei se era coisa da minha cabeça, mas alguma coisa havia naquilo tudo. Ela disse:
-Meu pai ligou hoje para meu Avô lá na Holanda...ele tá vindo pra cá...   ...   ... por causa de Epifânio.

Por Ricardo Serrão




quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Epifânio Augusto em: Dalila - Em busca do amor perdido.


Capítulo XI

Dalila

Em Busca do amor perdido

As férias chegaram, aproximavam-se as festas de fim de ano e algo de bom surgia no ar nesse período. Preparávamos tudo com carinho, e criávamos expectativas pelo Natal e o Ano Novo.
Estava me embalando na rede, deitado de lado, com uma das mãos dando impulso no chão de madeira, cheio de brechas, espiando da varanda uma vizinha que morava do outro lado da rua de piçarra, Helen Regiane, ela tinha a canela comprida, mais comprida que uma semana de fome, olhão graúdo, meio esbugalhado, pense numa gatinha, metida que só ela, não dava mole pra ninguém, parecia meio...sei lá...retardada, porque não dar mole nem pra mim que era o mais lindinho da turma só sendo dodói da cabeça mesmo.
Vi quando Dona Cristina boiou lá na cabeceira da rua, bem pequenina àquela distância, andando rápido, chega levantava poeira com os pés, por trás dela dava pra ver um céu de nuvens escuras prenunciando tempestade, afinal, já estávamos no período das chuvas. Levantei puxando pelo punho da rede. Ela chegou avexada com um envelope na mão: R....(ela quase me chama pelo nome...coisa que eu não gosto até hoje) digo, Valente, isso é pra você, estava na rede do Epifânio que entrou no mato pra caçar há três dias e ainda não voltou, e o pior, não levou a espingarda nem o facão...meu filho pode estar morto nesse momento no bucho de uma sucuri ou de uma onça. Você sabe onde ele vai caçar, pode ajudar a encontrá-lo?Tô preocupada, e o pai dele já tá querendo dar parte no posto da polícia do sumiço do menino. Tem seu nome aí, abra, por favor, Valente. Meu coração de mãe tá apertado e sinto que meu filho está encrencado ou vai se encrencar...leia por favor Valente.
Olhei para a garota do outro lado da rua que, vendo que alguma coisa estava errada se aproximou de nós e perguntou à D. Cristina, que já deixava rolar uma lágrima, se estava tudo bem. D. Cristina se desmanchou em choro e abraçou a menina sem nada dizer. A garota me olhou por sobre os ombros da mãe de Epifânio...e...meneando olhos e cabeça, perguntou do que se tratava.
Peguei o envelope e realmente tinha meu nome escrito, e com a letra de Epifânio. Abri meio ressabiado, afinal, em toda a minha vida jamais recebera qualquer correspondência que não fosse os injustos bilhetes da escola para meus pais, mas esses, claro, o Epifânio assinava por nós, ainda mais um papel com meu nome escrito pelo lôro...sei não...isso vai feder a cocô amanhecido na privada! pensei.
No envelope havia três papéis, dois enrolados e um semi aberto, o que decidi abrir primeiro. No bilhete estava escrito assim:
Valente...meu irmão... desculpa não ter falado com você antes, mas há alguns dias estou vivendo uma dor que somente a mim pertence...algo que preciso resolver sozinho, e sei que se dissesse qualquer coisa para vocês, certamente não me deixariam resolver da maneira que preciso resolver. No mês passado escrevi uma cartinha pra Dalila, pois soube que uma tia de MH iria pra Goiás...dias depois quando voltou, aquela senhora mandou me chamar e me deu um envelope de carta, colado...abri todo afoito, louco por notícias de Vida e...no envelope só tinha a minha carta e mais um pedaço de papel...são esses dois aí em sua mão.
O primeiro era a carta de Epifânio para Dalila e o segundo...de Dalila.
Decidi compartilhar com todos os originais.


...Quando você estiver lendo esse bilhete já estarei bem longe, vou pegar aquela estrada que dizem que vai dar em Rondônia e de lá tem outras estradas para outros estados, e chegarei a Goiânia onde ela está morando agora, sei que chegarei lá...a pé se preciso for... mas não se preocupe e acalme meus pais, estarei bem, pelo menos no que diz respeito à minha segurança,....já ao meu coração...está apertado, com medo do que pode ter acontecido à Dalila.

Meu amigo não fora pego por cobra grande ou onça. Se fosse por bicho certamente teria se safado da morte, mas foi pego por uma força mais poderosa e mais destrutiva....o amor....
Dona Cristina se desfez em prantos como criança, seu rosto logo se enlameou com a mistura de lágrimas e poeira da estrada, e a menina que conosco estava, agora sabia menos ainda o que fazer...eu ainda menos....não era como Epifânio, ele saberia o que fazer, mas eu?...pensei um pouco, preocupado com o amigo...e resolvi agir.
Deixei sua mãe em casa, ela iria conversar com o marido, tentar acalmá-lo, e fui à casa de Ankie. Pensei em pedir ajuda a seu pai. Cheguei, a família estava reunida em derredor de uma novilha recém nascida que recebia os cuidados de um veterinário da capital, seu Ardjan era homem de posses e sabia tratar bem do que era seu. Me viram chegando e Ankie correu para me abraçar, um caloroso abraço de saudade, como se as aulas tivessem acabado há muito tempo. Depois da confusão com os garimpeiros ela pôde se aproximar mais de nós, seu pai não se incomodava mais.
-Valeeente!!!! Que boooommmm que você tá aqui!!!
O pai da menina, mesmo não sendo mais inimigo, estava longe de ser amigo, olhou-me com aquele olhar de gente grande, de quem não está satisfeito com a presença e entrou na casa. Dona Betsie me recebeu com um sorrisão agradável perguntando que bons ventos me traziam ali. Contei-lhes parte da história e disse que viera ali falar com seu Ardjan, vê se ele poderia me ajudar ou, pelo menos, me orientar no que fazer.
A matriarca entrou na casa e ficamos,Ankie e eu, esperando uma resposta do lado de fora.
Dona Betsie apareceu na varando e disse para eu entrar...entrei...elas não. Seu Ardjan me esperava no escritório, atrás de uma grande mesa, sentado numa poltrona que parecia uma cama de solteiro com encosto...até de casal, quem sabe! As paredes não apareciam, pois estavam ocultas em toda sua extensão por uma enorme estante cheia de livros, de todas as cores, tamanhos, temas, e a maioria na língua dele, mas tinham muitos em português também, afinal, sua filha estudava em escola brasileira.  Vários sobre criação de gado, e plantação de mogno. Lembro de ter ouvido que quando ele veio para o Brasil, era novinho, recém casado com dona Betsie, tinham ambos, pouco mais de 18 anos, Ankie nascera no Brasil, logo depois, e quem os trouxe e comprou as terras que lhes pertenciam tinha sido seu pai, um jovem senhor chamado Gertjan, também Holandês é claro, que, nos meses que passou aqui, iniciou várias construções, como a escola onde estudávamos, o horto da cidade, a biblioteca municipal, algumas pracinhas...acho que era a forma dele de agradecer a recepção da cidade ao seu unigênito filho e sua linda e jovem esposa.
Contei a Seu Ardjan o que me levara ali naquele dia e ele...pensativo...olhando para fora da janela, balançando a cabeça negativamente, como que pensando: “- vou me meter de novo com essa gente...com essa molecada...no quê esse neguinho do cão se meteu agora?”...levantou-se, foi até o telefone, aquele de disco que faz triiimmmm, e discou para alguém, estranhei a quantidade de vezes que ele girava aquela rodela, pareceu mais de 20 vezes...esperou com o fone no ouvido...esperou...mais de um minuto se passou e..... me olhando com cara de quem sente que vai se meter em encrenca por causa de Epifãnio...de repente falou algo como: “-Vader”, e se virou de costas pra mim e começou a falar na língua dele com a pessoa do outro lado da linha, passou bons 10 minutos e eu ali...”bocoiando” na conversa. Aproveitei e fui dar uma olhada na estante e tive uma enorme surpresa quando, na terceira prateleira de cima, vi a ponta de um papel saindo de um dos livros, olhei para o homem que continuava ao telefone, puxei uma pequena escada de quatro degraus, acho que própria para Ankie pegar os livros que precisasse, e...curioso...subi e apanhei o papel..era uma fotografia em preto e branco, já envelhecida, nela estavam dona Betsie, Seu Ardjan, a mãe dele que se chamava Dona Jannieke, seu Otacílio com roupa de agricultor...e Dona Cristina....grávida...ela só tinha Epifânio...então...ele também estava na foto. O homem tomou o retrato da minha mão e disse:
“-Não mexa em nada moleque!”.
Me assustei, mas olhei pra ele com olhar de fúria que Epifânio fazia questão de treinar com a gente, como forma de fazer o adversário temer antes mesmo da porrada...e disse:
“- Não me chame de moleque!!não tenho medo de ti, nem de ninguém!!!!”...passei meu recado”.
Ele disse que iria na minha casa, falar com meus pais...iríamos à Goiás...meus pais chiaram demais, quase não deixaram, tiveram que ir no juizado de menor umas quatro vezes para que eu pudesse ir na companhia do Holandês, levamos mais de duas semanas até a viagem estar toda organizada...iria voar de avião pela primeira vez...até aquele momento nada de notícias de Epifânio...mas Dona Cristina parecia confiar no Holandês, pois estava tranqüila com ele no controle da viagem.
Os valentes estavam enraivecidos por não poderem ir, mas....não foram...partimos.
Quando nos dirigimos ao endereço que nos foi passado pela família de multi homem, seu Ardjan quis brigar no primeiro minuto...se fossem irmãos não pareciam tanto um com o outro, ele e Epifânio eram muito esquentados...lá nos disseram que Epifânio estava preso há seis dias na delegacia da cidade, fomos de táxi. Quando chegamos o policial que estava de plantão nos anunciou da seguinte maneira ao delegado:
“-Doutor, a família do demônio da tasmânia tá aqui!”.
O delegado saiu de uma saleta por trás da parede...não disse uma palavra...apenas estranhou o fato de terem anunciado a família do preto e encontrou um amarelo-pardo (euzinho aqui) e um loiro branquelão que mais parecia uma montanha, mas ainda assim...nada falou...abriu a portinhola que dava acesso às celas, destrancou um cadeado numa porta de grade, nos mandou entrar e nos levou aos fundos do prédio, onde ficavam duas celas, lado a lado...na primeira estavam três homens, todos arrebentados, com faixa na cabeça, esparadrapo na cara, mãos enfaixadas e... um com o braço engessado...bem caladinhos....na cela do fundão estava...Epifânio...sentado numa cama de concreto...de cabeça baixa, com o corpo coberto de sangue coalhado...fedia...não levantou a cabeça com nossa chegada...eu chamei: “-Lôro!!”....ele atendeu à minha voz e, levantando a cabeça, e com muita dificuldade o corpo, se aproximou das grades e disse: “-Me deixem aqui!...vão embora!!”.
O delegado reagiu a essas palavras:
“-Não senhor meu rapaz, aqui mesmo não. E virando-se pra nós falou pela primeira vez. “-Há dois plantões atrás trouxeram esse rapaz algemado, tentou tirar a namoradinha da casa dela sem a autorização do pai que chamou a polícia, ele entrou calmo, sem nada dizer, eu iria deixar ele só passar a noite aqui e mandá-lo embora pela manhã, nem fiz registro nem nada, mas de madrugada esses idiotas aí ao lado tentaram comer o pretinho...meu Deus...a gritaria trouxe todos os plantonistas e os guardas que aqui estavam no momento para ver o que estava acontecendo, a porrada era intensa, os caras tentavam dar nele e não acertaram sequer um soco nesse diabo, ele bateu tanto nesses bandidos que tivemos que salvá-los das mãos dele, já muito machucados e com ossos quebrados...esse sangue que vocês estão vendo nele não é dele...é deles (apontou para os três homens que nada falaram), os machucados nele foram causados pelos cassetetes dos guardas que não conseguiam tirá-lo da porrada com os meliantes...eu não quero saber nem o nome de vocês, apenas levem esse demônio daqui embora e tirem ele da cidade hoje....ah! e tem mais, não come há seis dias. Os caras aí disseram que ele bebe a própria urina...só pode ser o cão encostado nele.
Saímos dali direto para o hotel em que estávamos, Epifânio não tinha nenhuma roupa, nem calçado, estava magro demais, tomou banho enquanto seu Ardjan foi providenciar roupas e sapatos.
À noite, Epifânio comeu uma maçã, duas uvas e um copo de leite, mas bebeu muita água.
“-Precisamos tirar Dalila daquela casa, ela precisa ir conosco!”... disse ele.
“-Pare com isso, vamos embora pela manhã, já comprei as passagens, você precisa ir a um hospital, está fraco demais, vamos amanhã sim e acabou!” (retrucou seu Ardjan).
Epifânio que estava deitado envolto num lençol grande e pesado, sentou na beira da cama e olhou fixamente para o Holandês que estava sentado numa cadeira perto dele, ambos com o rosto na altura do outro, e ambos nem piscavam, era outra daquelas batalhas mentais, para ver quem desiste primeiro e pisca, mas nenhum piscava, foram minutos que me pareceram horas, e então Epifânio abriu a boca:
“-Eles a estupram desde que tinha 8 anos de idade...ela era ...e ainda é...só uma criança...da idade de Ankie...precisamos tirá-la de lá brother...eles já fizeram ela abortar um filho e ela nem mesmo sabe de quem era...
“...se era do tio....”
Ardjan arregalou os olhos num típico olhar de espanto...
...fiquei nervoso...
Epifânio continuou
“....se era de um dos dois  irmãos....”
Ardjan levantou-se como um mensageiro da morte...os olhos avermelharam, a pele queimou de repente, os dentes  rangiam de ódio...
...Fiquei com medo do que poderia fazer....
“....ou....e se era do próprio pai.... “......   ......Jesus!!! o que é isso?????
Agora ela me disse que eles vão levá-la pra zona e vender seu corpo para sustentar a casa...por favor...me ajuda!”. Epifânio estava frágil, emocionalmente frágil, psicologicamente frágil, fisicamente enfraquecido, e....chorou...   ...um choro de dor na alma...no coração...um choro de dor no amor.
Ardjan agitou-se pelo apartamento de um lado pro outro, como onça enjaulada.
Ficamos sem palavra....confesso que naquele dia eu nem sabia muito o que significava estupro ou aborto, mas, deviam ser coisas ruins...bem ruins...
O holandês saiu do apartamento, com ira nos olhos, apenas olhou da porta e disse: “-Fiquem aqui, vou resolver isso”.
Não falei nada, nem o loro, apenas deitei no chão ao lado da cama dele pra ele saber que eu estava ali...com ele...e que se ele decidisse invadir a casa dela para tirá-la eu iria com ele....pro tudo ou nada...ele faria o mesmo por mim....sei que faria.
Chorava baixinho palavras entrecortadas por soluços...tive a impressão de tê-lo ouvido dizer: “-Seu Índio mentiroso”. Acho que estava sonhando um sonho ruim.
Acordamos pela manhã com O batavo entrando pela porta nos chamando para sair imediatamente do quarto, mal escovamos os dentes e lavamos a cara, Epifânio andava com muita dificuldade ainda, descemos o lance de escada que levava para fora, Loro não parava de pedir ao holandês que não fizesse aquilo, que não o levasse embora sem Dalila, gritava algo tipo...”stoppen, stoppen!!”, quase chorando novamente...(que diacho era isso?)
A conta estava paga, saímos e nos deparamos com a polícia em frente ao hotel, três viaturas. O delegado que prendera Epifânio estava fora da veraneio vascaína, os guardas de prontidão, paramos...Ardjan disse: “-Vamos sair daqui agora, entrem na viatura”. ...Epifânio gritou mais alto: “-geeeeen broeeeeer!!!!!”...Ardjan parou de repente, ficou mudo...se aproximou de Epifânio, abraçou o menino que se desmanchava em lágrimas  pelo seu amor, pela desventura da pequena Vida...tentou dar socos no peito do gigante, mas parecia ter perdido toda a força...estava sem vida....estava....vazio...Ardjan o arrastou como quem arrasta um amigo bêbado pra fora do bar....cambaleante...parou ao lado da viatura na qual o delegado estava ao volante....aquele guerreiro exausto da luta ainda teve ímpeto para lançar aquele olhar de treinamento para o delegado, o homem devolveu-lhe o olhar, mas não era um olhar de ódio, nem de fúria...   ...era um olhar de respeito....desceu do carro...abriu a porta e...   ...ela estava lá....Dalila estava lá...enrolada num lençol azul clarinho.... velho....roto...   ...loro levantou a cabeça, o tronco, todo o corpo, se enchendo de vigor como a maré que se agigante sobre a praia...podíamos sentir a vida voltando pra ele, como um amplo e largo pé de mogno, que se alteia acima das outras árvores ...seus olhares se cruzaram e ela estendeu a mão para que ele entrasse e a abraçasse...Epifânio olhou em volta.... o delegado.... os policiais....   ....   ....Ardjan....olhou para o Europeu com uma expressão que jamais esquecerei, um brilho no olhar que nem em mil sóis eu veria novamente.... e disse: “-Danken u!”. o holandês respondeu com um enigmático gesto que só muito tempo depois me foi permitido saber o significado...fechou o punho da mão direita, levou até o lado esquerdo do peito e com o punho fechado da outra mão deu dois socos firmes no músculo do braço direito....era um código...estranho.
Epifânio entrou no carro...entramos...o delegado foi na frente com Ardjan lhe passando uns documentos que depois soube ser do juizado de menores autorizando a viagem de avião daquela menina com a gente...acho que era falso...mas!!!...   ...fui atrás com Epifânio e Dalila que não parava de chorar aninhada ao peito do meu amigo, ao peito do seu protetor...ao peito do seu amor...direto para o aeroporto...direto para casa...

...continua...




Por Ricardo Serrão

Qualquer semelhança é mera coincidência galera....ou não....sei lá...nesse mundo nada mais me surpreende.

Deusa Arte.

MÚSICA Já escrevi sobre a presença da arte nas nossas vidas. “A arte é assim, alguns gostam, outros nem tanto, outros são distantes, mas tod...