Drogado
Quando soube que Dalila havia sido
levada pelo velho Holandês, Epifânio sofreu o que jamais sofrera em toda sua
vida de adolescente. Não ficou a mesma pessoa. Isolou-se de nós, e por mais que
tentássemos fazer com que estivesse conosco como antes, ele não aceitava. Vivia
amuado, sozinho, mesmo na escola. Assim ficou por longos meses. Víamos quando
ia à casa de Ankie, talvez para perguntar notícias de sua amada Vida. Passava
mais tempo na casa dela que em qualquer outro lugar, mas ainda assim, muitas
foram as vezes em que o vimos a caminho do Borboleta Incendiada e andando com a
turma dos drogados da cidade. Os mesmos caras de quem ele tanto disse para
ficarmos longe agora eram sua principal companhia.
A turma foi se dispersando
naturalmente. O elo mais forte que nos unia era a presença de Epifânio, a
segurança que nos fazia sentir e a importância que ele dava a cada um de nós, e
agora, nada mais disso nós tínhamos e precisávamos seguir em frente. Nenhum de
nós queria se misturar com os maconheiros da área...ele quis....e se foi.
Um dia, quando eu estava
completando 17 anos de idade, convidei toda a turma para uma festinha em minha
casa, minha mãe faria um churrasco no almoço e depois veríamos um filme, ou
iríamos pegar maracujá do mato como antigamente. Ele não apareceu. Fomos andar
pelas trilhas, Guepardo, 213, camarão, sobrancelha, multi-homem, que quase não
veio, pois estava cada vez mais envolvido com uma turma de “frutinhas” da
escola, mas ainda assim era meu amigo e amigos são para sempre...e eu. Pegamos
alguns cajus, alguns maracujás do mato, e fomos em direção ao espaço sideral,
aquele lugar em que íamos nos satisfazer na bronha antes de conhecermos o
lupanário de Dona Quenga. Fazia tempos que não tínhamos mais aquela prática de
bater punheta todos juntos. Ficamos lá embaixo olhando a casa na árvore, sem
subir...estava bem feia...tipo...tábuas quebradas, muitos galhos cresceram ao
redor e ninguém se prestou a cortá-los....estava feia...muito feia. De repente
ouvimos barulho lá dentro e fumaça subindo para a copa da árvore. Qual não foi
nossa surpresa quando vimos as primeiras canelas preto-claras desbotadas
aparecerem na escada descendo de lá...era Epifânio. Desceu com os olhos muito
vermelhos, e em seguida desceram a turma de viciados com quem estava andando.
Nem sequer nos deu importância, passou por entre nós esbarrando e
empurrando-nos como se não fôssemos ninguém, quando quase caiu, de tão tonto
que estava, sobre multi-homem, este lhe deu um tapão nas costas e azunhou o
neguinho chapado, que nem sentiu dor. Os outros maconheiros passaram por nó
rindo e Marlon, o líder deles, o único de maior, ainda falou:
“-Perderam...perderam!”.
Minha raiva cresceu ao ponto de
voar sobre o cara e sair na porrada com ele, os outros não se meteram, nem dos
nossos nem dos dele, éramos apenas nós dois brigando...briga feia, ele era
forte, musculoso, e sabia brigar, mas eu tinha a meu favor a raiva que estava
sentindo e o amor que tinha pelo amigo perdido. Foram quase 5 minutos de
porrada intensa, socos, chutes, sangue, olho inchado, até puxão de cabelo e
mordida rolou, pois em briga de rua vale tudo, até apertar as bolas do outro.
Apartaram ...estávamos muito
machucados, mas valeu a pena...na verdade não valeu não... Epifânio nem sequer
viu a briga, não deu a mínima pra mim ou pro outro cara...nada tinha a ver com
o amigo que há pouco tempo era nosso líder...nosso irmão.
Fomos para nossas casas. No dia de
meu aniversário o presente que ganhei foi uma surra de um maconheiro filho da
puta, por causa de um cara que nem dava valor ao que sentia por ele.
À noite, deitado no escuro,
sentindo dor e pensando no dia, na briga, no ex-amigo...chorei...chorei por ter
perdido meu melhor amigo para as drogas. Não podia acreditar que tudo o que ele
nos ensinou acerca de nos mantermos longe das drogas, não serviu pra ele. Ele
que era tão mais forte que qualquer um de nós, não se dominou e
caiu...quedou-se aos encantos dos alucinógenos. Eu não tinha muita prática em
orar, mas, virei o corpo dolorido para o lado e, com os joelhos no chão,
continuei o choro da perda, da vergonha...da saudade do bom amigo...do melhor
amigo... ... ...
...Estava no momento de maior angústia quando senti uma presença ao meu
lado direito e um braço que se estendia por sobre meu ombro esquerdo, me puxando
para junto de si. Não olhei...cheguei a pensar que se tratava de meu pai, pela
forma carinhosa com que me abraçou....continuei chorando sem nada dizer a
Deus...apenas chorando....e ouvi uma voz dizer:
“- Valente”.
Meu pomo de adão fez aquela
conhecida viagem até a goela e voltou....os pêlos dos braços e das pernas se
eriçaram num longo arrepio...senti até os da cabeça se colocarem de pé. Olhei
pro lado, no escuro, e vi aqueles olhos arregalados me olhando...era Epifânio.
Não precisei falar nada...ele me abraçou com o abraço mais fraternal que alguém
poderia ser abraçado. Meus olhos jorraram uma cachoeira de lágrimas, como se o
próprio Jesus Cristo estivesse me abraçando com seus braços de segurança, de
paz, de carinho... de amor....amor de amigo.
“Lôro!” Exclamei. “Por que tu tá
fazendo essas besteiras cara?”...”Porra, tu tá se drogando man!!”. “Sai dessa e
volta para junto de nós...a turma já tá quase toda dispersa...tenho medo de que
outros façam besteiras também e se percam...como você”.
- Valente...” disse ele.... Há
cerca de seis meses, o Marlon, o cara com quem você brigou, chegou aqui na
cidade, trazendo quase seis quilos de uma droga gosmenta, e ensinou os
maconheirinhos daqui como misturar na maconha e fumar. Dizem que é tão viciante
que logo a pessoa se torna escrava disso (hoje é petrificada e é chamada de
crack). Pela quantidade de gente que fica perto da casa dele, estão chamando a
droga de mel e os meninos de abelhas. Dona De Lurdes me pediu ajuda para tirar
o filho dela dessa merda que esse tal de Marlon trouxe pra cá. Pensei por
alguns dias e decidi tentar ajudar o Isaías, filho dela, mas para isso teria
que aprender tudo sobre droga e como chegar perto do boqueiro sem que ele
percebesse minha real intenção. Por uma semana fui comprar com meu próprio
dinheiro a tal droga das mãos do cara, que, depois de ouvir sobre mim, decidiu
que me queria perto dele me oferecendo o cargo de segurança da boca e para isso
passou a me fornecer de graça a maldita. O fato é, que nunca coloquei sequer
uma miligrama desse troço no meu corpo, nem de maconha também, mas precisava
ganhar a confiança dele pra me aproximar de Isaías sem que notasse meu
interesse em ajudá-lo. Andei pelo Ardjan a procura de informações sobre drogas
e acabei me viciando em ler aquele monte de livros da biblioteca dele....em
seis meses já li 48 livros, sobre vários temas, inclusive drogas. E quando vou
à Dona Quenga, que sabe da tarefa que me foi solicitada, é para pegar dinheiro
emprestado para repor o dinheiro das drogas que Marlon me manda vender e eu
jogo no rio. Já tô devendo tanto a ela que acho que vou acabar tendo que comer
aquela gorda de verdade. Sempre que ela me empresta eu digo...-Dona Quenga
(Dona Maria Flor para os não íntimos) eu vou lhe pagar tudinho que a senhora tá
me emprestando. E ela responde com um sorriso de canto de boca: “Sei que
vai...ah vai!!”.
Eu não queria que nenhum de vocês
estivesse por perto nessa onda Valente, por isso me afastei da turma, pois sei
que não me deixariam entrar nessa sozinho, mas precisava estar só para
resgatar, não só o Isaías, mas todos os outros garotos das mãos desse maldito
traficante. Mais alguns dias e o entregarei às autoridades com todas as provas
para que seja preso e vá direto para a cadeia.
Dias depois vimos o Marlon ser
preso como muita droga na casa dele. Os garotos que viviam lá, e que quiseram
ajuda, foram levados para uma clínica de drogados que ficava numa fazenda da
igreja católica, na estrada interestadual....Isaías foi junto....Epifânio?
Bom...nos abriu os olhos para a realidade das drogas no dia em que nos reunimos
para recebê-lo de volta.
Outros adolescentes já estavam se
aproximando de nós, como André Giovanini, que passamos a chamar de quarto de
milha, Edgar, que se auto denominava Ed gato, e as gêmeas, o que Epifânio não gostou
muito no início, mas depois achou legal, Ana Clara e Ana Beatriz, ambas lindas,
elas tinham uma irmã que depois de um acidente, causado por uma brincadeira
lesa do namorado, com arma de fogo, ficou numa cadeira de rodas...igualmente
linda....Adara. O namorado? Sumiu!.
Depois de nos contar toda a
história, Epifânio nos fez entender que as pessoas que usam drogas, só usam por
vontade própria no início, mas depois de um tempo usam porque já estão viciadas
e não conseguem mais controlar seus desejos. Que na maioria das vezes entram
nessa por incentivo de más companhias, curiosidade, para tomar coragem de fazer
algo muito errado e mostrar a alguém que é macho, ou ainda para fugir de
problemas familiares, entre outros tantos motivos. “-Fiquem longe das drogas,
elas destruirão seus corpos, sua saúde, sua vida escolar, sua vida na sociedade
e farão de vocês pessoas cada vez menos inteligentes...fiquem longe dessa
maldição. Quanto mais tempo passarem com os livros, mas longe dessa realidade
marginal vocês estarão”.
“Esse é Epifânio....sempre
preocupado com os outros”.
Perguntei: “-E Dalila?”.
Ele me olhou de banda e disse:
“-Estou trabalhando nisso”.
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