domingo, 1 de março de 2015

Livro 2 Capítulo 1 - Drogado

Drogado

Quando soube que Dalila havia sido levada pelo velho Holandês, Epifânio sofreu o que jamais sofrera em toda sua vida de adolescente. Não ficou a mesma pessoa. Isolou-se de nós, e por mais que tentássemos fazer com que estivesse conosco como antes, ele não aceitava. Vivia amuado, sozinho, mesmo na escola. Assim ficou por longos meses. Víamos quando ia à casa de Ankie, talvez para perguntar notícias de sua amada Vida. Passava mais tempo na casa dela que em qualquer outro lugar, mas ainda assim, muitas foram as vezes em que o vimos a caminho do Borboleta Incendiada e andando com a turma dos drogados da cidade. Os mesmos caras de quem ele tanto disse para ficarmos longe agora eram sua principal companhia.
A turma foi se dispersando naturalmente. O elo mais forte que nos unia era a presença de Epifânio, a segurança que nos fazia sentir e a importância que ele dava a cada um de nós, e agora, nada mais disso nós tínhamos e precisávamos seguir em frente. Nenhum de nós queria se misturar com os maconheiros da área...ele quis....e se foi.
Um dia, quando eu estava completando 17 anos de idade, convidei toda a turma para uma festinha em minha casa, minha mãe faria um churrasco no almoço e depois veríamos um filme, ou iríamos pegar maracujá do mato como antigamente. Ele não apareceu. Fomos andar pelas trilhas, Guepardo, 213, camarão, sobrancelha, multi-homem, que quase não veio, pois estava cada vez mais envolvido com uma turma de “frutinhas” da escola, mas ainda assim era meu amigo e amigos são para sempre...e eu. Pegamos alguns cajus, alguns maracujás do mato, e fomos em direção ao espaço sideral, aquele lugar em que íamos nos satisfazer na bronha antes de conhecermos o lupanário de Dona Quenga. Fazia tempos que não tínhamos mais aquela prática de bater punheta todos juntos. Ficamos lá embaixo olhando a casa na árvore, sem subir...estava bem feia...tipo...tábuas quebradas, muitos galhos cresceram ao redor e ninguém se prestou a cortá-los....estava feia...muito feia. De repente ouvimos barulho lá dentro e fumaça subindo para a copa da árvore. Qual não foi nossa surpresa quando vimos as primeiras canelas preto-claras desbotadas aparecerem na escada descendo de lá...era Epifânio. Desceu com os olhos muito vermelhos, e em seguida desceram a turma de viciados com quem estava andando. Nem sequer nos deu importância, passou por entre nós esbarrando e empurrando-nos como se não fôssemos ninguém, quando quase caiu, de tão tonto que estava, sobre multi-homem, este lhe deu um tapão nas costas e azunhou o neguinho chapado, que nem sentiu dor. Os outros maconheiros passaram por nó rindo e Marlon, o líder deles, o único de maior, ainda falou:
“-Perderam...perderam!”.
Minha raiva cresceu ao ponto de voar sobre o cara e sair na porrada com ele, os outros não se meteram, nem dos nossos nem dos dele, éramos apenas nós dois brigando...briga feia, ele era forte, musculoso, e sabia brigar, mas eu tinha a meu favor a raiva que estava sentindo e o amor que tinha pelo amigo perdido. Foram quase 5 minutos de porrada intensa, socos, chutes, sangue, olho inchado, até puxão de cabelo e mordida rolou, pois em briga de rua vale tudo, até apertar as bolas do outro.
Apartaram ...estávamos muito machucados, mas valeu a pena...na verdade não valeu não... Epifânio nem sequer viu a briga, não deu a mínima pra mim ou pro outro cara...nada tinha a ver com o amigo que há pouco tempo era nosso líder...nosso irmão.
Fomos para nossas casas. No dia de meu aniversário o presente que ganhei foi uma surra de um maconheiro filho da puta, por causa de um cara que nem dava valor ao que sentia por ele.
À noite, deitado no escuro, sentindo dor e pensando no dia, na briga, no ex-amigo...chorei...chorei por ter perdido meu melhor amigo para as drogas. Não podia acreditar que tudo o que ele nos ensinou acerca de nos mantermos longe das drogas, não serviu pra ele. Ele que era tão mais forte que qualquer um de nós, não se dominou e caiu...quedou-se aos encantos dos alucinógenos. Eu não tinha muita prática em orar, mas, virei o corpo dolorido para o lado e, com os joelhos no chão, continuei o choro da perda, da vergonha...da saudade do bom amigo...do melhor amigo...   ...   ...   ...Estava no momento de maior angústia quando senti uma presença ao meu lado direito e um braço que se estendia por sobre meu ombro esquerdo, me puxando para junto de si. Não olhei...cheguei a pensar que se tratava de meu pai, pela forma carinhosa com que me abraçou....continuei chorando sem nada dizer a Deus...apenas chorando....e ouvi uma voz dizer:
“- Valente”.
Meu pomo de adão fez aquela conhecida viagem até a goela e voltou....os pêlos dos braços e das pernas se eriçaram num longo arrepio...senti até os da cabeça se colocarem de pé. Olhei pro lado, no escuro, e vi aqueles olhos arregalados me olhando...era Epifânio. Não precisei falar nada...ele me abraçou com o abraço mais fraternal que alguém poderia ser abraçado. Meus olhos jorraram uma cachoeira de lágrimas, como se o próprio Jesus Cristo estivesse me abraçando com seus braços de segurança, de paz, de carinho... de amor....amor de amigo.
“Lôro!” Exclamei. “Por que tu tá fazendo essas besteiras cara?”...”Porra, tu tá se drogando man!!”. “Sai dessa e volta para junto de nós...a turma já tá quase toda dispersa...tenho medo de que outros façam besteiras também e se percam...como você”.
- Valente...” disse ele.... Há cerca de seis meses, o Marlon, o cara com quem você brigou, chegou aqui na cidade, trazendo quase seis quilos de uma droga gosmenta, e ensinou os maconheirinhos daqui como misturar na maconha e fumar. Dizem que é tão viciante que logo a pessoa se torna escrava disso (hoje é petrificada e é chamada de crack). Pela quantidade de gente que fica perto da casa dele, estão chamando a droga de mel e os meninos de abelhas. Dona De Lurdes me pediu ajuda para tirar o filho dela dessa merda que esse tal de Marlon trouxe pra cá. Pensei por alguns dias e decidi tentar ajudar o Isaías, filho dela, mas para isso teria que aprender tudo sobre droga e como chegar perto do boqueiro sem que ele percebesse minha real intenção. Por uma semana fui comprar com meu próprio dinheiro a tal droga das mãos do cara, que, depois de ouvir sobre mim, decidiu que me queria perto dele me oferecendo o cargo de segurança da boca e para isso passou a me fornecer de graça a maldita. O fato é, que nunca coloquei sequer uma miligrama desse troço no meu corpo, nem de maconha também, mas precisava ganhar a confiança dele pra me aproximar de Isaías sem que notasse meu interesse em ajudá-lo. Andei pelo Ardjan a procura de informações sobre drogas e acabei me viciando em ler aquele monte de livros da biblioteca dele....em seis meses já li 48 livros, sobre vários temas, inclusive drogas. E quando vou à Dona Quenga, que sabe da tarefa que me foi solicitada, é para pegar dinheiro emprestado para repor o dinheiro das drogas que Marlon me manda vender e eu jogo no rio. Já tô devendo tanto a ela que acho que vou acabar tendo que comer aquela gorda de verdade. Sempre que ela me empresta eu digo...-Dona Quenga (Dona Maria Flor para os não íntimos) eu vou lhe pagar tudinho que a senhora tá me emprestando. E ela responde com um sorriso de canto de boca: “Sei que vai...ah vai!!”.
Eu não queria que nenhum de vocês estivesse por perto nessa onda Valente, por isso me afastei da turma, pois sei que não me deixariam entrar nessa sozinho, mas precisava estar só para resgatar, não só o Isaías, mas todos os outros garotos das mãos desse maldito traficante. Mais alguns dias e o entregarei às autoridades com todas as provas para que seja preso e vá direto para a cadeia.
Dias depois vimos o Marlon ser preso como muita droga na casa dele. Os garotos que viviam lá, e que quiseram ajuda, foram levados para uma clínica de drogados que ficava numa fazenda da igreja católica, na estrada interestadual....Isaías foi junto....Epifânio? Bom...nos abriu os olhos para a realidade das drogas no dia em que nos reunimos para recebê-lo de volta.
Outros adolescentes já estavam se aproximando de nós, como André Giovanini, que passamos a chamar de quarto de milha, Edgar, que se auto denominava Ed gato, e as gêmeas, o que Epifânio não gostou muito no início, mas depois achou legal, Ana Clara e Ana Beatriz, ambas lindas, elas tinham uma irmã que depois de um acidente, causado por uma brincadeira lesa do namorado, com arma de fogo, ficou numa cadeira de rodas...igualmente linda....Adara. O namorado? Sumiu!.
Depois de nos contar toda a história, Epifânio nos fez entender que as pessoas que usam drogas, só usam por vontade própria no início, mas depois de um tempo usam porque já estão viciadas e não conseguem mais controlar seus desejos. Que na maioria das vezes entram nessa por incentivo de más companhias, curiosidade, para tomar coragem de fazer algo muito errado e mostrar a alguém que é macho, ou ainda para fugir de problemas familiares, entre outros tantos motivos. “-Fiquem longe das drogas, elas destruirão seus corpos, sua saúde, sua vida escolar, sua vida na sociedade e farão de vocês pessoas cada vez menos inteligentes...fiquem longe dessa maldição. Quanto mais tempo passarem com os livros, mas longe dessa realidade marginal vocês estarão”.
“Esse é Epifânio....sempre preocupado com os outros”.
Perguntei: “-E Dalila?”.
Ele me olhou de banda e disse:
“-Estou trabalhando nisso”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deusa Arte.

MÚSICA Já escrevi sobre a presença da arte nas nossas vidas. “A arte é assim, alguns gostam, outros nem tanto, outros são distantes, mas tod...