Vidas são mais importantes que coisas
Já estávamos
embarcados há dois dias e meio. O barco navegava contra a correnteza adversa do
caudaloso rio, margeando-o para minimizar sua força. Já passava das sete horas
da noite quando começamos ladear a fazenda de Dona Maria Helena, proprietária
da Fazenda Trás-os-Montes. Levaríamos cerca de mais uma hora até chegar à sede,
de tão grande que era o lugar, e a sede ficava no centro do enorme terreno. Era
maior que todos os municípios que o circundavam. O recreio estava cheio, a
turma toda, junto com suas famílias, foi convidada para os festejos do
casamento de Maria João, única filha de Dona Manuela, que por sua vez, era a
filha única de Dona Maria Helena e Seu Joaquim Alvarenga de Trás-os-Montes, um
casal de portugueses que viviam no Brasil há muitas décadas instalados no
interior brabo do norte. Devido à escuridão total, pois não havia luar naquela
noite, o prático, que estava de turno no leme da nau, de minuto em minuto
acendia um enorme refletor sobre o teto do barco e iluminava a margem para
mensurar a distância e, de cabeça, calcular a profundidade da água. Como isso
era possível não sei... mas é assim até hoje.
Atracamos e
dezenas de empregados vieram nos ajudar com as coisas, parecíamos um bando de
retirantes fugidos de alguma catástrofe, mas só parecíamos. Na verdade éramos
as pessoas mais alegres do lugar pelo convite do casal de amigos que sempre que
podiam, estavam na cidade conosco para nossos festejos também. Fato é que para
eles, que possuíam até um pequeno avião, não era problema algum nos visitar.
Maria João casara há um mês em São Paulo, e toda a família estava lá. Agora
estava chegando da lua de mel para comemorar com a família no lugar onde
nascera e de onde partira para a grande metrópole para estudar e se tornar
odontóloga, dentista para nós. O avião tinha ido à capital paulista buscá-la
com a mãe para passar uma semana com os avós na fazenda. Ela era mais velha que
nós apenas uns cinco ou seis anos, era quase uma adolescente e se casara com um
esportista. Chegamos e nos alojamos. Como era noite, o casal anfitrião só nos
deu as boas vindas e se despediu para seus aposentos e logo pela manhã
estaríamos juntos à mesa do café. Os adultos foram logo se retirar também, nós...
é claro....queríamos um pouco de aventura e fomos andar pelo lugar, mesmo no
escuro, arrumamos lanterna com o pessoal de lá e fomos quase em romaria, 213,
Multihomem, Sobrancelha, Guepardo, Camarão, as gêmeas, Quarto de milha, Ed
Gato, eu e Epifânio. Andamos um bocado pelo lugar, falando alto e rindo, dando
sustos uns nos outros, não vimos animais soltos, andamos pela pista de pouso e
decolagem da fazenda. Para nós era muito comprida, mas depois viemos saber que
tinha apenas oitocentos metros... o que para nós...continuava sendo muito
comprida, ora essa! Ao lado de uma das cabeceiras da pista havia um enorme
hangar onde guardavam a aeronave e alguns tratores, do outro lado, uma casinha
com duas bombas de combustíveis, como um pequeno posto de gasolina. Às margens
da outra cabeceira havia apenas restos de carroças velhas, e o que naquela
escuridão nos pareceu pneus usados cobertos com lona para não armazenarem água
e se tornarem focos do mosquito da dengue ou de outros carapanãs.
Às cinco da
madrugada a fazenda já estava a todo vapor, com todos acordados fazendo alguma
coisa, inclusive os proprietários que já conversavam com nossos pais. A mesa
estava montada com comidas típicas de interior, tapioca, beju, bata doce
cozida, queijo coalho, coalhada, cará cozido, macaxeira cozida quentinha,
banhada na manteiga, bolo de fubá, canjica, farofa de tucumã, ovos fritos e
cozidos, jaraqui frito, melancia, mamão, manga, sucos diversos, e vários outros
produtos da fazenda. Havia cerca de cinqüenta pessoas numa grande alegria. Nós
comemos e zimpamos para o estábulo para montarmos em cavalos e passear pelas
redondezas. Passamos um dia de sonhos, com os outros jovens do lugar, incluindo
as locais com aquela beleza amazônica que só aqui tem. Alguns empregados já
davam início aos preparativos do churrasco que aconteceria naquela tarde quando
Maria João chegaria com sua mãe e o marido. No finalzinho do dia, quando já se
desenhava o pôr-do-sol por sobre a linha do horizonte verde da floresta,
voltamos à sede da fazenda e o que encontramos foi um alvoroço só. Apeamos dos
cavalos e os amarramos perto do capim baixinho ao lado da casa. O avião da neta
de Dona Maria Helena perdeu contato com o rádio da fazenda com o qual seu
Joaquim sabia da localização e situação do tempo pelo piloto Ícaro Bentes, o
grilo. A última notícia era que iriam se atrasar, pois o aeroporto de São Paulo
esteve fechado por um tempo e só saíram no meio da tarde de lá. A noite caiu
rapidamente e a tristeza e o desespero tomaram conta da casa grande. De repente
faltou energia, o grupo gerador do lugar parou de funcionar. Correram para ativar
o de reserva, mas descobriram que também estava com problemas. Pronto! O pânico
tomou conta de todos. As mulheres choravam com Dona Helena, os homens falavam
todos ao mesmo tempo o que poderiam fazer se o avião aparecesse no ar, pois não
haveria luz na pista, uma vez que ela só era usada à noite em caso de extrema
necessidade e com o auxílio das luzes do grupo gerador. Estávamos no canto da
varanda só ouvindo sem entender muita coisa... menos Epifânio...ele estava
observando tudo...calado e ouvindo...andando pelos cantos...no escuro....só
haviam as luzes das lamparinas.
Ouviu-se um
chiado no rádio que era à bateria. Aquele típico barulho de rádio tentando
sintonizar. De repente a voz do grilo ecoou pela sala “PAPA TANGO CHARLIE ECO
chamando fazenda Trás-os-Montes câmbio, alguém na escuta?” repetiu, mais uma
vez e falou em outro tom “Seu Joaquim, pelo amor de Deus na escuta?” aqui é
grilo chamando. Seu Joaquim correu para o rádio e mandando que todos na sala se
calassem respondeu afoito:
“-GRILO MEU
FILHO, ONDE VOCÊ ESTÁ?”
“-Patrão,
estamos com problemas, combustível acabando, painel de controles operando
limitado e não sabemos onde estamos, minha última referência de localização foi
há 20 minutos quando pude avistar a estibordo o vulto do monte muiracatiara a
cerca de um quilômetro de nós e estou me mantendo em linha reta, pois sei que
vou em direção à fazenda, mas não tenho instrumentos para aterrissar nem como
me localizar exatamente...Patrão...estamos em perigo.”
Dona Helena
desmaiou, seu Joaquim entrou em desespero, não sabia o que fazer, só gritava
com os empregados querendo saber do motor de luz, o que estavam fazendo.
“-Porra cadê
essa merda de energia? O que estão fazendo que não conseguem colocar esse motor
pra funcionar? Esse avião vai chegar em menos de vinte minutos por essas bandas
e minha filha e minha neta precisarão de ajuda pra pousar aqui... vamos
cambada, vamos... me ajudem pelo amor de Deus!!!”.
Ouvimos quando alguém
chamou a atenção de seu Joaquim e disse:
“Seu Joaquim... peça
ajuda a Epifânio... ele vai dar um jeito...”
Epifânio estava
em pé, encostado na janela do lado de fora da casa, ouvindo e observando
tudo... E nós, próximos dele, sentados na beira da varanda sem nada poder fazer...
apenas esperar a morte certa...Seu Joaquim saiu rapidamente pela porta da casa
e correu em direção a Epifânio e disse chorando como criança: -Lôro....não sei
porque, mas se essas pessoas confiam em você é porque você pode fazer alguma
coisa....me ajuda amiguinho...se você pode fazer alguma coisa me ajuda....salva
minha filha e minha netinha...eu lhe dou qualquer coisa se puder me
ajudar...faça o que for preciso.
“Epifânio
acendeu uma lamparina que segurava na mão, levantou até a altura do rosto
olhando fixamente para aquele desesperado senhor e perguntou: “-o que for
preciso?”... “Sim!! O que for preciso”, disse seu Joaquim.
Ele se virou em
nossa direção... pudemos ver aquele olhar de quem já quer lutar...lutar contra
a morte...mais uma vez contra a morte...parecia ter prazer quando se tratava de
vencer essas batalhas tensas em favor da vida...mesmo que não fosse a sua.
Levantamos todos... meus cabelos se eriçaram arrepiados...parecia
contágio...possessão...seus olhos brilhavam....lá se foi o pomo de adão naquela
viagem...
“Galera... (na
primeira palavra dele já podíamos sentir a emoção que tomava conta de nós... até
os novatos foram atingidos pela descarga de adrenalina)... essa é a nossa deixa...
vamos ajudar essa gente a aterrissar esse avião... aos cavalos!”...
Sobrancelha
gritou: “-Riiiiiii Ráááááááá!!!!!!!”.
Montamos e ele
foi dando as ordens:
Sobrancelha,
Multihomem, Edgato e Camarão, peguem aqueles pneus e os coloquem enfileirados
nas laterais da pista, como não são muitos, procurem colocar na metade dela,
numa distância de dois metros entre um e outro; Guepardo, Quarto de milha e 213
amontoem aquelas carroças velhas no final da pista bem no centro; Meninas
arrumem três tambores grandes de farinha e nos encontrem na cabeceira da pista;
Valente comigo!
Fomos direto
para as bombas de combustível, ele quebrou o cadeado das correntes nas
mangueiras, as meninas chegaram, enchemos os tambores de gasolina e mandou que
derramassem sobre os pneus deixando um rastro do combustível entre eles.
Estavam pesados e eu fui ajudá-las, elas com um e eu com o outro enquanto Epifânio
ficou enchendo o último tambor.
Estávamos
cumprindo nossas tarefas quando ela passou a galope no centro da pista, com o
tambor cheio sobre o cavalo, rumo ao final onde estavam as carroças. Banhou as
carroças com o líquido inflamável. Gritou: “- Saiam daqui, saiam todos agora!”.
E ateou fogo às carroças velhas o que iluminou o fim da pista. Também ateou
fogo nos pneus o que pareceram as luzes laterais da pista.
Ouvimos o
barulho do avião quando já chegávamos à casa grande. Todos gritaram de alegria
quando viram a pista um pouco iluminada, mas seu Joaquim disse: “-É pouca luz...
não vai dar certo!” Epifânio chegou a galope ligeiro e de longe gritou para o
senhor da casa:
“-Seu Joaquim...
qualquer coisa?”
“O patrão
afirmou que sim, mas disse que não tinha luz suficiente, e que do avião não
daria pra ver a cabeceira da pista.
Epifânio
repetiu “-Seu Joaquim... qualquer coisa?” O velho silenciou... e ficou lhe
olhando.....ele completou: “-Avise pelo rádio que a pista está no meio do
fogo....bem no centro das grandes chamas...avise agora!”
Que grandes
chamas? Pensei.
Nem esperou a resposta...
voltou rumo às bombas de combustível. Seu Joaquim avisou o grilo, mas o piloto
informou não saber se daria certo, pois via o fogo muito pequeno lá de cima e
que seria muito arriscado, mas não tinha outra coisa a ser feita.
Dona Helena em
prantos, seu Joaquim descrente, mas com esperança...
O cavalo que o
lôro montava chegou sozinho na casa. Vimos quando Epifânio acendeu duas tochas
e se colocou na cabeceira da pista fazendo sinal para o avião. Poderia dar
certo... mas o risco de morte era real...todos atônitos, numa gritaria
desesperada....de repente...uma das tochas foi lançada rumo ao hangar... putaquiupariu...
Ele tascou gasolina e tocou fogo no hangar do avião com os tratores dentro... e
a outra tocha foi lançada rumo às bombas de combustível... BOOOOOMMMMMM... Lá
se foi o posto pelos ares... vimos quando as bombas subiram e caíram longe como
dois mísseis....pronto!...Pista iluminada... Todos gritaram pelo susto...o
avião embicou no rumo das chamas....podíamos ver a silhueta de Epifânio contra
o fogo na pista...andando em nossa direção e o pequeno avião passando lá
atrás...no solo....seguro....parecia filme....enquanto todos correram para o
final da pista em direção ao avião, ele caminhava em nossa direção vindo da
cabeceira...todos sãos e salvos...num gigantesco abraço... ...Seu
Joaquim parou no meio do caminho e se virou para o pretinho das soluções...ele
também parou e se virou para o senhor daquelas terras como que esperando
algo...Seu Joaquim, num gesto de gratidão, tocou o peito com ambas as mãos
abertas e estendeu o indicador direito apontando para o nosso amigo como que
dizendo...”agora você é filho desta casa...tenho uma dívida com você”....nós
esperamos ele chegar...ele chegou....disse apenas:
“-Tô com fome,
será que ainda tem leite?”.
“Incomparável
Epifânio!”.
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