segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Revelação em quatro atos - Cadeia itinerante.


Certa vez, sentado à mesa da sala de estar, donde podia ver meu pai no sofá assistindo ao futebol na TV, iniciei uma carta... Assim.

1º Ato - A confissão

A quem não me conhece a fundo, quero confessar.
Já fui preso.
Pra mim não é uma coisa fácil de confessar, pois nem mesmo eu sei dizer quando aconteceu ou como aconteceu, uma vez que as imagens vêm à minha mente assim... meio turvas...como um sonho que a gente se esforça para lembrar ou uma lembrança de um passado distante, ou até mesmo uma lembrança de um festa regada a muito álcool, mulheres, rock e otras cositas más. O fato é que não consigo lembrar com clareza quando e como isso aconteceu, só sei que aconteceu. Outra coisa intrigante é que, às vezes, vejo meu pai nessas lembranças, como se ele me colocasse na cadeia. Coisa de doido mesmo.

2º Ato - As lembranças

Vou relatar o pouco que lembro.
Lembro bem que era uma cela com grades ao redor, era um pouco apertada porque eu conseguia tocar as grades da lateral esquerda e da direita sem sair do lugar, mas a grade da frente era mais distante, tinha que andar até ela e a de trás me servia de encosto. Outra coisa intrigante era o fato de não ter teto, isso mesmo, a cadeia não tinha teto. Sobre minha cabeça era livre, podia ver tudo acima de mim, mas não lembro se havia estrelas ou sol quente. Também lembro a sensação que eu tinha. Não era medo, ou solidão, ou clausura, era sensação de alegria, de prazer, de família.
A cadeia era itinerante... assim...tipo móvel. Lembro bem que passava em frente a um matagal, cheio de árvores frutíferas, e havia muito verde, pois eu conseguia ver, pelas grades, mangueiras, bananeiras, mamoeiros, abacateiros e muitas outras frutas, também lembro de campos verdes e vacas.
Ah! Como eu gostaria de entender essas minhas lembranças.
Lembro que passávamos por locais de morte, onde havia muitos corpos esquartejados, não dava para identificar nenhum, pois eram apenas pedaços de corpos, orelhas, pés, ossos, tudo muito vermelho de carne viva.
E o lago? Ah! Havia lago também. Lembro bem dos peixes, eram de todo tamanho, pequenos, grandes, gordos, magros, finos e compridos, alguns arredondados. Acho que passávamos também por estados do sul do país, ou até mesmo em outros países, pois eu me lembro de muito gelo, montanhas de gelo.
Eu sei que estava preso, mas não tenho lembranças de que essa prisão me fizesse ficar mais tenso, ou mais estressado, ou mais violento, lembro apenas de que era uma cadeia itinerante.

3º Ato - O Compartilhamento

Decidi ler a bendita carta para meu pai.
Peguei o papel avulso no qual escrevia a bendita, e levei até ele entre um tempo e outro do jogo na TV.
- Pai, disse eu, o senhor poderia me ajudar com uma coisa? Estou confuso com algumas lembranças que tenho.
Ele, muito sério, com aquele olhar de John Wayne, virou e disse:
- Fala, o que é?(ah bruto!).
Li a carta pra ele assim mesmo, meio sem graça, meio constrangido e no final fiquei chocado com a resposta de meu querido pai.

4º Ato – A descoberta

Ele disse:
- Deixa de ser leso, isso era quando tu eras criança e eu te colocava no carrinho do supermercado.

Ah!...
...Tá!...
...Então tá!...
...Que bom!...
...Ufa!...

...Sou ficha limpa.

Por Ricardo Serrão

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