domingo, 14 de junho de 2020

Epifânio Augusto, os Valentes e o vírus maldito.

Olá amigos!

Há tempos que nenhum de nós escreve nada a respeito do neguinho travesso...Epifânio Augusto...

Se já leu nossas histórias, vai saber que sou o único que não teve a origem do apelido contada pelo Epifânio... ainda bem...mas sei que aquele capiroto vai falar um dia...mas não vai pro céu não... aquilo não é do céu... nem do inferno...é de algum lugar pior.

Já sou adulto...família formada...todos morando na mesma casa...esposa, filhos, cachorras…sogro e sogra...claro, não na mesma sequência de importância. Se assim o fosse, cachorras viriam depois de...casa.

Vim contar uma história da nossa infância. Uma história de calamidade que aconteceu quando éramos pré-adolescentes. E quem precisava contar essa história era eu mesmo, porque sou a parte principal da situação.

Em meados dos anos oitenta, houve na nossa cidade um surto de um vírus desconhecido. Me atrevo a dizer que era conhecido de alguém, mas não de alguém da nossa comunidade.

Algumas pessoas adoeceram, outras vieram a óbito por causa da doença. Pessoas conhecidas, amigas, até aparentados, sem que ninguém soubesse o que fazer. Nem os médicos, nem os rezadores da comunidade, nem os pais e mães de santos como Dona Mariana, nem os padres, nem os pastores protestantes que apareceram pregando cura pra tudo em Nome de Jesus...mas não curaram tudo...nem Jesus curou tudo...sabe-se lá o porquê!!!

Agora vocês saberão porque eu é quem estou contando essa história. Fui um dois que adoeceram...

Um dia, quando o galo cantou, tipo, 4:30 da manhã, abri os olhos, mas não me senti como nos outros dias. Me senti quente, respirando forte, com o nariz entupido, os olhos ardendo, uma tosse seca e com desconforto no corpo. Era criança, então tudo se resumia a:

- MÃE!!!! TÔ COM QUEBRANTO!!!!

Minha mãe veio, olhos remelados, boca pôdi como se tivesse comido minha meia, botou a mão na minha testa, puxou a pálpebra pra baixo (só hoje eu sei o nome desse troço...pálpebra...na época era beiraduzóio), e disse:

-Tá com os olhos fundos, pálido, melhor levar na dona Neném (Toda rua tinha uma dona neném) e essa tinha um filho doido ( doido mermu) que todo mundo gostava, pois todo bairro tem um doido que todo mundo gosta (Celestino Neto).

Nem rezadeira, nem benzedeira, nem padre, nem médico, nem pastor, nem mesmo Jesus me curou daquele bicho. Disseram à minha mãe que eu estava com o pulmão pela metade e que não era pneumonia, nem turbeculose...não escrevi errado não...era assim que chamava na comunidade...igual a rezistro, salxixa, taberna, cabeçário, e nós faz...rsrsrs, mas todo mundo se entendia.

Então...adoeci...como era difícil curar tuberculose, e não sabiam o que era o que eu tinha, quiseram logo me colocar isolado de todo mundo, mas minha mãe, que era braba às pencas, não deixou ninguém me deixar sozinho num quarto se ninguém sabia o que eu tinha... me levou pra casa.

Os dias que se seguiram foram cruéis. Não conseguia respirar direito, mal sentia gosto, mal sentia cheiro de alguma coisa, por isso não sentia fome e ficava cada vez mais fraco.

O médico disse à minha mãe que a doença era contagiosa, que podia ser contraída pelo ar, e por esse motivo eu não poderia receber visita de ninguém, nem mesmo de parentes.

No sétimo dia eu não parava de tossir, com dor, sem escarrar nada, não tinha catarro (tá com nojo? Você não imagina o meu desejo de ter catarro naqueles dias e que se soltasse pra eu engolir como todo mundo faz escondido e nega, mas não tinha).

Meus avós não podiam me ver, meus tios, meus primos também não, mas o pior é que eu não podia ver os amigos...os Valentes...Mesmo que pedisse à minha mãe ela não deixava eles me verem...mas...eu era um deles...aprontava como eles...sofria como eles...chorava como eles...pensava como eles...e mesmo sentindo que as coisas eram muito sérias pro meu lado, tipo...morte se aproximando... sabia que os Valentes estavam pensando em como me veriam e me ajudariam a sair daquela situação de morte.

Epifânio não negaria uma boa briga sem lutar...mesmo que soubesse que perderia.

No décimo dia não acordei...faltava ar ao ponto d’eu desmaiar...ouvi ao longe um som de batucada, tipo, marchinhas de carnaval...seria o céu?...o paraíso?...ou o carnaval era de fato a festa da carne e todo mundo que brinca carnaval vai pro inferno?...a muito custo consegui abrir os olhos... a rede ficava na ilharga da janela...então pude ver...

OS VALENTES...

MEUS AMIGOS...

...ESTAVAM TODOS VESTIDOS DE MULHER E FAZENDO BATUCADA DE CARNAVAL COM INSTRUMENTOS FEITOS DE LATA VELHA...

Nunca, nenhum macho que fosse macho se vestiria de mulher naquela época...quem se vestia de mulher eram os “viados” da cidade (de quem Epifânio, não sei por qual motivo, era muito amigo...será?).

Meus amigos se divertindo, juntos, por mim, na frente da minha janela, brincando...era tudo o que eu precisava. Meu espírito se fortaleceu, meu corpo reagiu positivamente,

Aquilo alegrou meu coração de tal maneira que naquele dia pensei:...

-MEU DEUS, OBRIGADO, ESTOU MELHOR...ESTOU BOM...ESTOU CURADO!!!!

Infelizmente não foi isso que aconteceu.

Morri...

...mas enquanto estava morto tive uma sonho, tipo, você vai dizer que mortos não sonham...então...dane-se você...eu estava morto e estava sonhando também, abestado!... e no meu sonho vi meus amigos sorrindo...sem nenhuma tristeza no coração. Como alguém que tem certeza de que determinada coisa acontecerá, mesmo que não deva acontecer...

O outro lado me chamava...havia paz e descanso lá...mas para um guri de 12 ou 13 anos, paz e descanso eram duas coisas que eu certamente não precisava. Eu queria roubar caju, ir pro espaço sideral, servir as quengas do lupanário borboleta incendiada, etc...

...mas estava morrido pelo vírus...morrido...quase morto perpetuamente...mas senti algo estranho no meu corpo...algo diferente...que me chamava de volta...

Seria o espírito santo? Não, não era...

Seria o espírito de porco? Também não era...

Não estou escrevendo para que alguém acredite na minha história. Escrevo para que conheçam a minha história e saibam que ninguém é uma ilha... que ninguém pode resolver os problemas sozinho...que todos precisamos de amigos, de hoje, de ontem...mesmo aqueles amigos com quem um dia você discutiu e não fala mais...

...Morri e voltei...voltei e vi a cena que todos deveriam ver um dia...ou desfrutar do prazer de ver um dia...

...voltei e vi...

Multi-homem, Guepardo, Sobrancelha do capeta, Camarão, Valente, e Epifânio deitados...dormindo...no assoalho da casa, embaixo da minha rede...estavam de máscaras feitas de cueiro e cordão amarrado nas orelhas, correndo o risco de serem contagiados.

...MEUS AMIGOS...COMO NENHUM OUTRO HÁ...AMIGOS DA VIDA E DA MORTE...

Não sei como descrever o que senti...estavam todos dormindo...mas eu estava muito mais que acordado...estava agradecido, estava radiante, estava feliz... estava...vivo...

O amor dos meus amigos me salvou...

Não há vírus que suporte a força do amor de uma amizade verdadeira.

Valorize a amizade. Ligue para seus amigos hoje e diga o quanto os ama. Ou compartilhe essa história com alguém que você considera muito seu amigo e ele certamente saberá o quanto você o considera.

Ricardo Serrão.

P.S.

Se dez amigos solicitarem, eu permitirei que o Valente conte a origem do meu apelido:

Agente 00213.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deusa Arte.

MÚSICA Já escrevi sobre a presença da arte nas nossas vidas. “A arte é assim, alguns gostam, outros nem tanto, outros são distantes, mas tod...