Sonhos de
ícaro
Ricardo
Serrão
Voltamos da fazenda
Trás-os-Montes e Epifânio não voltou conosco. Foi autorizado pelos pais a
passar um tempo lá a pedido de seu Joaquim e de Dona Maria Helena
Alvarenga de Trás-os-Montes. Conseguiram até que o jovem não
parasse os estudos e ficasse numa escola próxima, apenas para não perder o ano,
afinal, já estávamos em reta final nos estudos. Foram seis meses naquele lugar,
longe de Epifânio. Por vezes nos pegamos sentindo falta das aventuras com ele e
acabávamos lembrando de uma ou outra travessura.
Depois que Dalila foi embora com
Gertjan, o velho Holandês, pai de seu Ardejan, e avô de Ankie, Epifânio vivia
na casa deles, lendo, e o Holandês massaroca ensinou Epifânio a dirigir o
Galaxie.
Um dia haveria Show do Ultraje a
Rigor, uma banda de Rock famosa, num clube da cidade bem afastado de onde
morávamos. Queríamos ir, mas ninguém tinha carro, só o dinheiro do busão e dos
ingressos, talvez um troquinho pra tomar um refri, e mais nada. Epifânio era
maluco por essa banda e foi pedir a Ardejan que nos levasse ou nos emprestasse
o carrão... nem um, nem outro...
-Então tá... Se é assim, dou um
jeito. Disse Epifânio ao gigante.
Sábado à noite... todos prontos,
no banco da praça, autorizados pelos pais, dinheiro no bolso, esperando
Epifânio chegar para decidirmos como chegaríamos ao show. Passaram vários
carros, em alta velocidade, buzinando alto, jovens embriagados indo rumo ao
clube, carros de polícia fazendo barulho, muita agitação na cidade, afinal, era
o Ultraje a Rigor na nossa capital, ônibus lotados, gente indo caminhando, tava
uma loucura, motos com três, quatro pessoas, ambulância com a sirene ligada,
certamente já havia acidente no caminho, e era justamente a grandona do
hospital dos Acidentados que ficava perto da nossa casa.
–Vixe, já teve morte! Alguém
comentou.
A bichona freou cantando pneu bem
na nossa frente.
-BÓÓÓÓÓÓÓRAAAAAAAA
CAMBAAAAAADAAAAAAA!!!!!!!!!
Caralho, velho! Era Epifânio no
volante da ambulância com jaleco de enfermeiro.
Um olhou pro outro e pulamos pra
dentro da viatura barulhenta num frissom.
-Pôrra, mano, tu roubou uma
ambulância cara!! Pirou de vez, como foi isso?
-Roubar, não roubei não, peguei
emprestado. Corri lá no hospital e disse que minha mãe tava tendo um treco, e
que tava toda roxa... Os caras de branco saíram correndo na minha frente e eu
fui junto gritando que eles tinham que me levar pra mostrar o endereço... me
levaram...
E tu levou eles na tua casa mesmo
Lôro?
... Não... ... Na tua
valente... essa hora tua mãe tá doidinha lá, se explicando...
-Putaquiupariu seu maluco, vou
apanhar quando chegar em casa.
-Vai valer a surra Valente, o
show vai valer a surra.
Por todo o trajeto os carros iam
saindo da frente quando ouviam a sirene. Num determinado semáforo o trânsito
engarrafou e Epifânio acenava com os braços para fora pedindo para saírem da
frente e ninguém se movia, quando de repente, apareceu um guardinha de moto e
desceu correndo e se pôs embaixo do semáforo e foi exigindo passagem para a
ambulância... saímos dali com Epifânio agradecendo ao guarda que prontamente se
colocou em posição de sentido e bateu continência para o enfermeiro em missão
de salvar vidas... Epifânio.
Paramos a viatura a uns dois
quarteirões do clube e Epifânio saiu correndo deixando o jaleco pra trás e nem
olhou pra nós, saímos correndo atrás do demônio preto.
Já dentro do clube nos divertimos
demais, pois a banda era sensacional. Não precisávamos beber bebida alcoólica,
ou usar qualquer outra coisa para nos alegrarmos, nossa saúde e energia
bastavam.
Naquela noite ainda houve outro
acontecimento... Dançávamos todos juntos a última música do show, MH, Camarão,
213, Sobrancelha, Guepardo, eu e o Lôro, quando de repente, os músicos pararam
de tocar, o vocalista, que era dono de uma língua maior que de tamanduá e vivia
colocando a bichona pra fora da boca durante o show, mandou parar o show.
- Ôo! Parô, parô, parô, parô!!!
Mandou o guitarrista.
–Galera...
Todo mundo gritou em uníssono,
vibrando porque o Roger estava interagindo com a platéia... Êêêêêê!!!!!!!
-Galera, galera... peraí... me
respondam numa boa...
Quando cantamos “Nós vamos
invadir sua praia” alguém jogou areia em alguém aqui? Ou ficou de biquíni ou de
sunga aqui?
Todos responderam:
Nããããoooooo... ... ...
-Quando cantamos “Eu tinha uma
galinha que se chamava Marylú” alguma das gurias presente saiu dando pra todo
mundo aqui?
Todos em côro:
Nããããoooooo... ... ... alguns até protestaram porque
queriam que isso tivesse acontecido...
Então... me digam... POR QUE QUE
AGORA QUE ESTAMOS CANTANDO “PELADO, PELADO, NU COM A MÃO NO BOLSO”, ESSE
NEGUINHO TÁ PULANDO NU AÍ NO MEIO DE VOCÊS?
O cara do canhão de luz lançou um
clarão de sol sobre nosso grupo...
... Epifânio tava nu...
inacreditável... de onde aquele filhote de “cruzcredo” tirou essa idéia????
Mais incrível ainda foi que a
galera vibrou...
-ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ!!!!!! Fazendo o
sinal de Rock and Roll com as mãos e colocando a língua pra fora... inclusive
os músicos roqueiros...
Resultado... os seguranças
fizeram Epifânio se vestir sob vaias de protesto... afinal... agora ele era o
herói da noite... o cara mais punk do show... ficou mais conhecido na cidade
que farinha em mesa de pobre.
Seis meses e ele estava chegando.
A notícia de que Epifânio chegaria no próximo sábado agitou a turminha. Iríamos
ao aeroporto esperar o amigo para saber das novidades e contar as daqui. Ele
chegou... sério como sempre... ô guri que não sorria era esse!!! Bom... nós nos
alegramos quando o vimos descer do jatinho do seu Joaquim com o Grilo. A
Aeronave foi estacionada num hangar alugado pelo rico fazendeiro e só partiria
na manhã seguinte de volta à fazenda, depois de fazerem-lhe a revisão e
abastecimento.
Nos divertimos naquela noite,
Grilo esteve conosco o tempo todo, pois iria dormir na casa do Lôro.
A certa hora da noite Epifânio me
chamou, a mim e a 213 no canto pra falar... passamos alguns minutos...
tensos minutos... voltamos ao grupo e 213 correu pra casa... os garotos e
as meninas perguntaram o que houve... nada falei... não havia nada a ser
dito... o clima ficou pesado... a turma sabia que alguma coisa estava
acontecendo... ou estava por acontecer.
O Grilo não bebia bebida forte.
Às vezes tomava uma taça de vinho e nada além disso, mas naquela noite, depois
de muita insistência de seu Otacílio, ele tomou caipirinha de limão-laranja da
terra. Ficou completamente embriagado e com a língua pesada... ria de tudo e
lutava para permanecer em pé.
Ao amanhecer, antes mesmo do sol
mostrar a cara no horizonte, estávamos no aeroporto, Epifânio, 213 e eu, no
hangar onde estava o jatinho da fazenda esperando Grilo chegar. Ele chegou...
cedinho... reclamando de dor de cabeça... ressaqueado.
Ícaro Bentes já estava com o
plano de vôo em mãos... olhava muito nervoso para Epifânio...
-Você tem certeza disso guri?
Perguntou Ícaro ao Lôro. –Acha que consegue?
Epifânio estava calado... olhando
o amigo aviador... nada disse... apenas pegou o papel com o plano de vôo
das mãos do Grilo e entregou-lhe outro...
Vimos quando o ônibus do
aeroporto parou na estrada e um monte de gente saiu correndo dele... nossos
pais... nossos amigos... pronto! Deu merda!!! Quem teria falado alguma coisa?
213 quis desistir... com medo...
tentou persuadir o Lôro de não ir, mas este, olhando-lhe a alma através dos
olhos, disse:
-Vou precisar de você Rubinho...
Ela também. 213 tomou fôlego e...
-Tá bom, mano... eu vou.
Eu confesso que também estava muito
inclinado a desistir. Epifânio sabia nadar muito bem, correr mais ainda, era um
exímio piloto de bicicleta e carrinho de rolimã, montava um cavalo como um
índio americano, mas... isso era diferente... não cabia erro.
-Precisamos ir agora... disse ele
olhando firme para Ícaro...
O piloto do jatinho entregou-lhe
a chave da aeronave... entramos... o avião começou taxiar para a cabeceira da
pista.
Os pais e os amigos chegaram com
Ícaro Bentes, o grilo, e lhe perguntaram quem estava pilotando o avião se ele
ainda estava ali.
-Epânio, disse ele.
Seu Otacílio muito puto disse:
-Desde quando esse garoto sabe pilotar avião rapá?
-Desde que ficou na fazenda não
faz outra coisa além de dizer que ia buscar sua namorada a qualquer custo, e
convenceu o patrão a permitir que eu lhe ensinasse pilotar... o que não foi
problema... aprendeu em duas semana... depois foi só treino e prática... todo
esse tempo pilotando esse avião... sabe tanto ou mais que eu.
-E por que você não foi com ele
para a fazenda?
-Porque ele não foi para a
fazenda seu Otacílio.
-Pra onde ele foi meu amigo? Por
favor, me diga pra onde meu filho tá indo? E me responda, por que você não o
impediu? Perguntou dona Cristina já chorando.
-Porque ele me ameaçou...
Ameaçou de quê? de lhe matar? De
lhe surrar Grilo? Perguntou o pai do garoto.
-Não... respondeu Grilo... me
ameaçou de não ser mais meu amigo... o senhor suportaria perder a companhia de
Epifânio?
No momento em que o avião deixava
o solo rumo ao céu Grilo entregou o plano de vôo a nossos pais e nossos amigos
dizendo que teria ido com ele se ele tivesse permitido, mas não permitiu... era
uma tarefa que ele deveria executar, disse ele.
Só havia uns números e umas
letras...
Assim...
52° 23' N and 4° 55' E
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