sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Livro 2 - Capítulo 3 - Sonhos de Ícaro

Sonhos de ícaro
Ricardo Serrão

Voltamos da fazenda Trás-os-Montes e Epifânio não voltou conosco. Foi autorizado pelos pais a passar um tempo lá a pedido de seu Joaquim e de Dona Maria Helena Alvarenga  de Trás-os-Montes.  Conseguiram até que o jovem não parasse os estudos e ficasse numa escola próxima, apenas para não perder o ano, afinal, já estávamos em reta final nos estudos. Foram seis meses naquele lugar, longe de Epifânio. Por vezes nos pegamos sentindo falta das aventuras com ele e acabávamos lembrando de uma ou outra travessura.
Depois que Dalila foi embora com Gertjan, o velho Holandês, pai de seu Ardejan, e avô de Ankie, Epifânio vivia na casa deles, lendo, e o Holandês massaroca ensinou Epifânio a dirigir o Galaxie.
Um dia haveria Show do Ultraje a Rigor, uma banda de Rock famosa, num clube da cidade bem afastado de onde morávamos. Queríamos ir, mas ninguém tinha carro, só o dinheiro do busão e dos ingressos, talvez um troquinho pra tomar um refri, e mais nada. Epifânio era maluco por essa banda e foi pedir a Ardejan que nos levasse ou nos emprestasse o carrão... nem um, nem outro...
-Então tá... Se é assim, dou um jeito. Disse Epifânio ao gigante.
Sábado à noite... todos prontos, no banco da praça, autorizados pelos pais, dinheiro no bolso, esperando Epifânio chegar para decidirmos como chegaríamos ao show. Passaram vários carros, em alta velocidade, buzinando alto, jovens embriagados indo rumo ao clube, carros de polícia fazendo barulho, muita agitação na cidade, afinal, era o Ultraje a Rigor na nossa capital, ônibus lotados, gente indo caminhando, tava uma loucura, motos com três, quatro pessoas, ambulância com a sirene ligada, certamente já havia acidente no caminho, e era justamente a grandona do hospital dos Acidentados que ficava perto da nossa casa.
–Vixe, já teve morte! Alguém comentou.
A bichona freou cantando pneu bem na nossa frente.
-BÓÓÓÓÓÓÓRAAAAAAAA CAMBAAAAAADAAAAAAA!!!!!!!!!
Caralho, velho! Era Epifânio no volante da ambulância com jaleco de enfermeiro.
Um olhou pro outro e pulamos pra dentro da viatura barulhenta num frissom.
-Pôrra, mano, tu roubou uma ambulância cara!! Pirou de vez, como foi isso?
-Roubar, não roubei não, peguei emprestado. Corri lá no hospital e disse que minha mãe tava tendo um treco, e que tava toda roxa... Os caras de branco saíram correndo na minha frente e eu fui junto gritando que eles tinham que me levar pra mostrar o endereço... me levaram...
E tu levou eles na tua casa mesmo Lôro?
... Não...  ... Na tua valente... essa hora tua mãe tá doidinha lá, se explicando...
-Putaquiupariu seu maluco, vou apanhar quando chegar em casa.
-Vai valer a surra Valente, o show vai valer a surra.
Por todo o trajeto os carros iam saindo da frente quando ouviam a sirene. Num determinado semáforo o trânsito engarrafou e Epifânio acenava com os braços para fora pedindo para saírem da frente e ninguém se movia, quando de repente, apareceu um guardinha de moto e desceu correndo e se pôs embaixo do semáforo e foi exigindo passagem para a ambulância... saímos dali com Epifânio agradecendo ao guarda que prontamente se colocou em posição de sentido e bateu continência para o enfermeiro em missão de salvar vidas... Epifânio.
Paramos a viatura a uns dois quarteirões do clube e Epifânio saiu correndo deixando o jaleco pra trás e nem olhou pra nós, saímos correndo atrás do demônio preto.
Já dentro do clube nos divertimos demais, pois a banda era sensacional. Não precisávamos beber bebida alcoólica, ou usar qualquer outra coisa para nos alegrarmos, nossa saúde e energia bastavam.
Naquela noite ainda houve outro acontecimento... Dançávamos todos juntos a última música do show, MH, Camarão, 213, Sobrancelha, Guepardo, eu e o Lôro, quando de repente, os músicos pararam de tocar, o vocalista, que era dono de uma língua maior que de tamanduá e vivia colocando a bichona pra fora da boca durante o show, mandou parar o show.
- Ôo! Parô, parô, parô, parô!!! Mandou o guitarrista.
–Galera...
Todo mundo gritou em uníssono, vibrando porque o Roger estava interagindo com a platéia... Êêêêêê!!!!!!!
-Galera, galera... peraí... me respondam numa boa...
Quando cantamos “Nós vamos invadir sua praia” alguém jogou areia em alguém aqui? Ou ficou de biquíni ou de sunga aqui?
Todos responderam: Nããããoooooo...   ...   ...
-Quando cantamos “Eu tinha uma galinha que se chamava Marylú” alguma das gurias presente saiu dando pra todo mundo aqui?
Todos em côro: Nããããoooooo...   ...   ... alguns até protestaram porque queriam que isso tivesse acontecido...
Então... me digam... POR QUE QUE AGORA QUE ESTAMOS CANTANDO “PELADO, PELADO, NU COM A MÃO NO BOLSO”, ESSE NEGUINHO TÁ PULANDO NU AÍ NO MEIO DE VOCÊS?
O cara do canhão de luz lançou um clarão de sol sobre nosso grupo...
... Epifânio tava nu... inacreditável... de onde aquele filhote de “cruzcredo” tirou essa idéia????
Mais incrível ainda foi que a galera vibrou...
-ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ!!!!!! Fazendo o sinal de Rock and Roll com as mãos e colocando a língua pra fora... inclusive os músicos roqueiros...
Resultado... os seguranças fizeram Epifânio se vestir sob vaias de protesto... afinal... agora ele era o herói da noite... o cara mais punk do show... ficou mais conhecido na cidade que farinha em mesa de pobre.
Seis meses e ele estava chegando. A notícia de que Epifânio chegaria no próximo sábado agitou a turminha. Iríamos ao aeroporto esperar o amigo para saber das novidades e contar as daqui. Ele chegou... sério como sempre... ô guri que não sorria era esse!!! Bom... nós nos alegramos quando o vimos descer do jatinho do seu Joaquim com o Grilo. A Aeronave foi estacionada num hangar alugado pelo rico fazendeiro e só partiria na manhã seguinte de volta à fazenda, depois de fazerem-lhe a revisão e abastecimento.
Nos divertimos naquela noite, Grilo esteve conosco o tempo todo, pois iria dormir na casa do Lôro.
A certa hora da noite Epifânio me chamou, a mim e a 213 no canto pra falar... passamos alguns minutos... tensos  minutos... voltamos ao grupo e 213 correu pra casa... os garotos e as meninas perguntaram o que houve... nada falei... não havia nada a ser dito... o clima ficou pesado... a turma sabia que alguma coisa estava acontecendo... ou estava por acontecer.
O Grilo não bebia bebida forte. Às vezes tomava uma taça de vinho e nada além disso, mas naquela noite, depois de muita insistência de seu Otacílio, ele tomou caipirinha de limão-laranja da terra. Ficou completamente embriagado e com a língua pesada... ria de tudo e lutava para permanecer em pé.
Ao amanhecer, antes mesmo do sol mostrar a cara no horizonte, estávamos no aeroporto, Epifânio, 213 e eu, no hangar onde estava o jatinho da fazenda esperando Grilo chegar. Ele chegou... cedinho... reclamando de dor de cabeça... ressaqueado.
Ícaro Bentes já estava com o plano de vôo em mãos... olhava muito nervoso para Epifânio...
-Você tem certeza disso guri? Perguntou Ícaro ao Lôro. –Acha que consegue?
Epifânio estava calado... olhando o amigo aviador... nada disse... apenas pegou o papel com o  plano de vôo das mãos do Grilo e entregou-lhe outro...
Vimos quando o ônibus do aeroporto parou na estrada e um monte de gente saiu correndo dele... nossos pais... nossos amigos... pronto! Deu merda!!! Quem teria falado alguma coisa?
213 quis desistir... com medo... tentou persuadir o Lôro de não ir, mas este, olhando-lhe a alma através dos olhos, disse:
-Vou precisar de você Rubinho... Ela também. 213 tomou fôlego e...
-Tá bom, mano... eu vou.
Eu confesso que também estava muito inclinado a desistir. Epifânio sabia nadar muito bem, correr mais ainda, era um exímio piloto de bicicleta e carrinho de rolimã, montava um cavalo como um índio americano, mas... isso era diferente... não cabia erro.
-Precisamos ir agora... disse ele olhando firme para Ícaro...
O piloto do jatinho entregou-lhe a chave da aeronave... entramos... o avião começou taxiar para a cabeceira da pista.
Os pais e os amigos chegaram com Ícaro Bentes, o grilo, e lhe perguntaram quem estava pilotando o avião se ele ainda estava ali.
-Epânio, disse ele.
Seu Otacílio muito puto disse: -Desde quando esse garoto sabe pilotar avião rapá?
-Desde que ficou na fazenda não faz outra coisa além de dizer que ia buscar sua namorada a qualquer custo, e convenceu o patrão a permitir que eu lhe ensinasse pilotar... o que não foi problema... aprendeu em duas semana... depois foi só treino e prática... todo esse tempo pilotando esse avião... sabe tanto ou mais que eu.
-E por que você não foi com ele para a fazenda?
-Porque ele não foi para a fazenda seu Otacílio.
-Pra onde ele foi meu amigo? Por favor, me diga pra onde meu filho tá indo? E me responda, por que você não o impediu? Perguntou dona Cristina já chorando.
-Porque ele me ameaçou...
Ameaçou de quê? de lhe matar? De lhe surrar Grilo? Perguntou o pai do garoto.
-Não... respondeu Grilo... me ameaçou de não ser mais meu amigo... o senhor suportaria perder a companhia de Epifânio?
No momento em que o avião deixava o solo rumo ao céu Grilo entregou o plano de vôo a nossos pais e nossos amigos dizendo que teria ido com ele se ele tivesse permitido, mas não permitiu... era uma tarefa que ele deveria executar, disse ele.
Só havia uns números e umas letras...
Assim...
52° 23' N and 4° 55' E


Deusa Arte.

MÚSICA Já escrevi sobre a presença da arte nas nossas vidas. “A arte é assim, alguns gostam, outros nem tanto, outros são distantes, mas tod...